O QUE A NOITE ME CONTA
Num dia quente de agosto de 1995, a paisagem assustada por clarões inesperados e colorida por tonalidades avermelhadas e azuis, cheguei na minúscula Picado. Passava um pouco das quatro da tarde e a luz trêmula, lenta, imitava a gravidade dos domingos. Uma idosa de rosto corado ofereceu-me ajuda, anunciando a alma nordestina cálida: "Está perdido, meu filho?". A mulher viçosa em sua simplicidade confirmou a teoria de Freud de que somos vítimas da doença da civilização. Ao redor, a solidão doía em ruas agrestes e nenhuma vegetação exuberante. Encantado com a força do Recôncavo baiano lembrei da Mata Atlântica, de bairros superpovoados, da Chapada Diamantina, das praias de Itacaré, de inúmeros rios, cachoeiras e montanhas da terra de Oxóssi. A senhora me despertou dos pensamentos lúdicos contando com orgulho que a comunidade fora toda pintada para um filme. "Seremos conhecidos em todo o mundo, sim senhor", afirmou ingenuamente.
De minúsculo gravador em punho, ia justamente visitar os sets de filmagens, ou melhor, minto, procurava Sonia Braga para vê-la pelo menos uma vez na vida. Ela era (e ainda é) uma das atrizes latino-americanas mais bem-sucedidas nos Estados Unidos, abrindo caminho para futuras estrelas como Jennifer López e Salma Hayek, e desde o auge de sua carreira, em Luar sobre Parador / Moon Over Parador (1987), que não rodava nos trópicos. A intuição dizia para superar o vazio do desconhecimento, afinal os dias são mais alegres quando os sonhos são realizados, e a heroína de personagens de Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Gilberto Braga, Janete Clair, Dias Gomes e Manuel Puig era um sonho de menino. Eu a considerava uma das mulheres mais lindas do planeta; me masturbei no vazio do meu quarto grapiúna pensando em seu rabo; colecionei um grande álbum com mais de uma centena de fotos da deusa e discutia com amigos que duvidavam do talento dela como intérprete. M as todo amor passa um dia e acabei por deixar de pensar na morena de Maringá, embora veja seus filmes com prazer ainda hoje, como o recente Império (2002), onde faz a mãe da mocinha enamorada de um mafioso hispânico, ou a participação especial na série Sex and the City (2002).
Segui a estrada de terra até o local do renascimento da lúbrica Tieta. O símbolo sexual finalizava uma cena com Marília Pêra. Um duelo calculado para atrair a atenção do público. Nos bastidores, um silêncio quase religioso. O sol amornava, galinhas ciscavam num jardim de gerânios e um cão magro dormia debaixo da rede cor marfim. Não ouvia o que as atrizes falavam, mas o movimento corporal de Sonia me pareceu ardente e úmido. No rosto, um tom lascivo altamente sacana. Revoadas de andorinhas cortaram o céu quando o diretor deu por encerrado o trabalho do dia. Marília seguiu para o camarim e lá se trancou, logo se fazendo ouvir a Terceira Sinfonia de Mahler, Was mir die Nacht Erzaehlt (O Que a Noite me Conta). Terminando uma preocupada conversa com Carlos Diegues, Sonia relaxou, convidando a todos para uma pequena celebração em suas acomodações. Movia-se com graça natural, o corpo dançando e o sorriso sem acanhamentos. A musa de Caetano Veloso, que fez pa ra ela Tigresa, simples, algo inocente, já sentia os efeitos da idade. Mas notei um universo singular em sua personalidade. É uma daquelas garotas que pensam que podem fazer qualquer coisa e ficar impunes.
A mágica baiana nas vibrações noturnas, nas vozes dengosas, na iluminação dócil e nos vaga-lumes. Êta terra feiticeira! Ave raça de árabes, africanos e portugueses! Lar de Catarina Paraguaçu, Gregório, Glauber, Bethânia, Mãe Meninha, Waly, Mario Gusmão, Jorge Medaur, Ruy Póvoas, Iami Rebouças, Gideon Rosa, Candinha Dórea, dona Lurdinha, Gideon Rosa, Verinha Rabelo, Fahda Maron, Euzner Telles e Gustavo Haun. Sonia Braga, mesmo nascida no Sul, é baiana. Tá no sangue. Agradável e acolhedora, a atriz distribuía batata doce cozida para os convidados. Não se surpreendeu ao saber que, como jornalista, não tinha fechado qualquer acordo para publicação da nossa conversa. Falamos sobre Tieta, o livro e a novela, e também sobre um conto italiano pensado nela como protagonista da adaptação cinematográfica. Deu gostosas risadas tomando licor de jenipapo. Eu me senti bem acolhido, o coração embalado no júbilo. Pouco adiante, piados de aves noturnas e de cobras prontas para engolir rãs. Bebi a segunda caipirinha, flertando com a noite profunda através da janela escancarada, e essa me contou que eu estava diante de um ícone, possivelmente um dos mais fascinantes do final do século 20.
Antonio Júnior
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