Dona Lucrécia
Você pode e deve duvidar, mas o caso que segue é real. Aconteceu aqui nas redondezas em que habitamos, possui testemunhas e fartos registros audiovisuais que o corroboram. Trata dos atos e vexames da famigerada Dona Lucrécia de Alcântara Pereira Sobrinho — apelidada por alguns de Viúva Porcina graças àquela antiga novela da Globo — e de suas andanças por uma... pois é... uma concessionária de automóveis.
Diga-se, antes de tudo, que essa Dona Lucrécia não poupava suores por uma boa contenda verbal, prática que o povinho do bairro, desde tempos imemoriais, identifica com as expressões “barraco” e “rodar à baiana”. Assim era na feira, no banco, na padaria, na cabeleireira e especialmente na escola dos filhos. Vexadíssimo, seu esposo, o desembargador Fabrício de Alcântara Pereira Sobrinho, homem próspero e incorruptível, sempre aparecia para reparar os estragos da virtuosa consorte:
— Olha só o que você fez, Tiquinha — (Ah, tá! Era assim que o desembargador chamava a esposa).
— Não entendo o que se passou aqui — respondia ela, indicando a própria cabeça. — Ai, Torresminho (e esse era o apelido dele), tá zangadinho comigo, tá?
— Claro que não, Tiquinha. Impossível.
— Bem... Pelo menos fiz a minha parte, né?!
Nosso caso começa quando o doutor Fabrício resolveu comprar um carro novo. Quinze dias depois, sempre ocupado, solicitou à esposa — “minha Tiquinha linda” — que levasse o veículo à concessionária para uma revisão de rotina. Dona Lucrécia prontamente atendeu ao pedido do esposo.
O problema é que o rapaz da concessionária negou atendimento.
— Desculpe, minha senhora, mas esse carro não tem hora marcada na nossa oficina.
— E carro agora marca hora? Vocês não passam é de um bando de pilantras, isso sim. Antes de vender o carro é doutorzinho pra cá e doutorzinho pra lá, né? Depois só falta mandar o cliente se...
— Por favor, minha senhora, não precisa se alterar, nós...
— Eu não estou alterada! — urrou Dona Lucrécia, e seu urro pôde ser ouvido do outro lado do asfalto, por entre buzinas e caminhões.
Daí pra frente, nem Deus acreditaria no que aconteceu. Sorte foram as câmeras, que tudo captaram com exatidão. Dona Lucrécia começou xingando a moça da limpeza, que caiu em lágrimas, passou pela oficina, onde fez um mecânico se jogar no poço da lavação, subiu até a sala do gerente, que quase foi arremessado pela janela, e terminou dando de dedo num velhinho de bengala, que nada entendeu porque era surdo e estava ali tentando vender o seu Corcel 1970.
Por fim, quando os empregados da concessionária se ajoelharam e prometeram que o carro ficaria pronto até as três da tarde — o mais tardar três e trinta —, e quando um deles levou os 140 quilos de Dona Lucrécia até em casa (ah, tá!, esqueci de dizer que a mulher era gorda como um mamute), ela finalmente telefonou para o marido e contou a calamidade pela qual passara.
— A que concessionária você foi, Tiquinha?
— Naquela da rodovia, onde mais?
— Essa não, Tiquinha. Eu comprei o carro lá no centro. Você foi ao lugar errado.
— Lugar errado? Ai, Torresminho, o que é que eu fui fazer? Tá zangadinho comigo, tá?
— Claro que não, fofa. Impossível.
— Bem... Pelo menos fiz a minha parte, né?
Maicon Tenfen