SÉRGIO PORTO E AS MULHERES
Eu era criança, muito criança mesmo. Coisa de quê? Nove, dez anos. Nada a ver com os infantes da classe média de hoje, que parecem saber tudo. Crianças capazes de ministrar aulas de Informática para qualquer marmanjo. Pequenos habilitados ao envolvimento em campanhas políticas e ecológicas, demonstrando um grau de consciência e senso de observação deveras precoce. Meninos e meninas preparados a ensinar a qualquer sexólogo onde ficam não apenas seus respectivos pontos "G", mas também, os "H", "Y", "Z" e todo abecedário.
Não, eu quase não dispunha de suficiente informação a respeito de que assunto fosse; menos ainda, detinha opiniões consistentes sobre qualquer tema em debate. Ignorava por completo a existência da palavra "retórica", e vivia a ilusão das ilusões: acreditar no que meus pais muito cedo me haviam ensinado. Diziam eles: "o objetivo da vida de um homem deve ser torna-se bom". E "ser bom" era entender que todos somos irmãos, pois temos um Pai em comum, residente lá no Céu, de onde aguarda a volta dos filhos pródigos. Por intuição, aplicava os princípios silogísticos e deduzia que, embora meu pai fosse meu pai, ele seria necessariamente meu irmão, uma vez que todos provínhamos daquele Pai distante. Achava tudo isso muito justo e natural. O mais notável residia na minha suposição de que todos pensavam de maneira idêntica, estando, em conseqüência, empenhados na prática do bem. A vida para mim possuía um sentido, como nunca mais veio a ter.
Pois se dava no contexto dessa percepção, um tanto quanto onírica da realidade, meu processo de observação e aprendizagem. Eu ainda não pensava em um dia vir a tornar-me escritor, bizarrice que somente me passaria pela cabeça quando tivesse meus doze anos. Com essa idade, um dia entrei na cozinha e declarei em tom solene à minha atarefada mãe, para sua total perplexidade: "quando crescer, quero ser escritor".
Naquela época, gostava de ligar o rádio num programa vespertino e ouvir as crônicas de Sérgio Porto. Com certeza não devia entendê-las bem, contudo me agradavam por sua musicalidade.A cabeça recostada no tampo da grande mesa de escritório do meu pai, juntinho ao aparelho, o pensamento viajava. Para que porto me levariam as palavras de Sérgio? Confesso que não sei, mas me deviam fazer um grande bem, pois essa lembrança se encontra entre as melhores que tenho de minha infância.
Recordo-me de meu pai trazer sempre o jornal Última Hora, no qual havia uma coluna assinada por Stanislaw Ponte Preta. Eu sempre lia essa coluna. Não era absolutamente capaz de captar-lhe a ironia sutil, a pertinência da crítica política e de costumes. Porém, gostava da presença dos personagens Rosamundo, primo Altamirando, tia Zulmira. Desnecessário dizer: acreditava que eles existiam mesmo e me intrigava com certas situações em que Stanislaw envolvia seus "parentes".
É inenarrável o meu espanto quando descobri que Sérgio Porto e Stanislaw Ponte Preta eram uma só e mesma pessoa. Como poderia ser isso? Naturalmente, transmiti minhas inquietações a meu pai terrestre, que, como bom irmão, fez o que pôde para tentar explicar para mim o que era um pseudônimo. Não foi fácil aceitar aquilo, obrigou-me a uma profunda revisão de conceitos. Então era possível que uma única pessoa ostentasse mais de um nome. Por fim, terminei por arquivar o fato na pasta de absurdos do mundo adulto, onde já existiam os arquivos "papai-noel não existe.doc" e "meu filho essa história de cegonha não é de verdade.txt". Que mais eu podia fazer?
De todas as crônicas ouvidas naquelas tardes, houve uma em especial a deixar rastros em minha memória. Dizia respeito a uma narrativa curiosa, na qual Sérgio Porto dava conta de que passara um dia inteiro somente vendo mulheres feias. O texto descia a pormenores daquele dia, desde seu início até o momento no qual o cronista, já de noite, fora dormir. O tom evidenciava-se falsamente dramático, mas eu o interpretei ao pé da letra. Estendi minha íntima e silenciosa solidariedade àquele homem a viver tamanha desventura. Porém, quiçá por já saber que Sérgio não era apenas Porto, mas também, Ponte, duvidei. Sim, talvez pela primeira vez eu tenha ousado duvidar de um escritor. Seria possível? Um dia inteiro de mulheres feias?
Esclareça-se que embora a visão das sumariamente vestidas "Certinhas do Lalau", sempre nas imediações de sua coluna, já me causassem interesse, a definição de uma mulher bonita para mim continuava a ser estabelecida pela beleza do rosto. Rostos de mulheres, tais como cores, luzes e estrelas se encontravam na minha pasta de clipartes especiais para momentos de encanto. E por mais que eu repassasse em minha memória, de fato não me conseguia lembrar de um único dia inteiro em que apenas mulheres horrendas tivessem passado por mim. Entretanto, considerei: talvez pudesse ser. Assim, embora eu não dispusesse da mínima consciência de que se tratava disso, inaugurei-me na aplicação do método científico para a verificação de uma hipótese.
Não sei quanto durou; ao ir para a escola e também ao dela voltar, eu observava com atenção meninas, moças e senhoras. Depois, ao voltar para casa, anotava com cuidado num caderno: "tanto do tanto, cinco mulheres muito bonitas". Não demorou, concluí pela impossibilidade de haver um único dia não iluminado por um rosto de mulher. Desse modo, descobri que, com aquela insólita narrativa, Stanislaw realçava um fato rotineiro, mas despercebido: os dias são enfeitados por mulheres bonitas. Tratava-se de um elogio à mulher e à beleza.
Precisei, no entanto, de algum tempo a mais para compreender a lição maior: Sérgio era Porto e era Ponte, e o que ele fazia não se comprometia com a realidade imediata, mas, com o significado íntimo e tantas vezes sutil da realidade, que cabe à literatura manifestar. Bom, não por ser fato; sim, por ser belo e revelador, tal como os rostos de muitas mulheres, a inspirar a crônica de cada dia.
Ricardo Alfaya