O NABABO
De regresso de uma excursão pelos subterrâneos da alma humana, um escritor louvava, certa vez, entre as virtudes que lá descobrira, o pecado da Vaidade. Esse defeito, na sua opinião, era o mais vantajoso de quantos possui o Homem. Foi pela vaidade de possuir um nome ressoante que Colombo descobriu a América. E é a Vaidade, ainda, que dá de comer aos humildes, utilizando nas oficinas milhões de operários, que tecem a seda, fabricam os leques, esculpem as jóias. Tudo, na terra, é Vaidade, e só Vaidade, afirma o Eclesiastes. E Pascal adianta: a Vaidade está de tal maneira inveterada em nosso coração, que os próprios filósofos não lhe fogem ao império: aqueles que escrevem contra a glória, querem a glória de haver bem escrito; e aqueles que lêem, querem a glória de ter lido.
Há, entretanto, um gênero de Vaidade que não tem, sequer, essa atenuante: é a do pavão que se espaneja sem cauda, a que repousa na mentira, na falsidade, no ridículo, a que procura, em suma, viver dos juros sem um risco evidente do capital, e da qual é sacerdote, no Rio de janeiro, o conhecido "gentleman" Dr. Alfredo Pereira da Cunha.
Modesto de posses, vivendo de um emprego que lhe dá dificilmente para as despesas imprescindíveis, esse meu jovem amigo tem uma fraqueza: pertencer ao número dos cavalheiros irrepreensivelmente elegantes, equiparando os seus coletes aos do Dr. Villaboim, as suas gravatas às do Dr. Darcy, os seus colarinhos aos do Dr. Galeno Martins, as suas botinas às do Dr. Arnaldo Guinle, os seus ternos aos do desembargador Ataulfo, as suas camisas às do Dr. Humberto Gotuzzo, e, até o seu monóculo de vidro ordinário, ao monóculo de cristal puro do eminente Dr. Leão Velloso. E tudo isso com a circunstância de atribuir-se tudo — coletes, gravatas, colarinhos, botinas, ternos, camisas, monóculos, — em quantidades verdadeiramente atordoantes. Dessa forma da sua vaidade, há uma demonstração curiosa, em que eu funcionei, há dias, como testemunha involuntária.
Sentados um diante do outro, tomávamos nós, no Alvear, o nosso chá das cinco horas. quando me chamaram a atenção, na elegância americana do meu amigo, uns arabescos em linha branca, traçados no cós da sua calça de flanela, no intervalo dos botões destinados ao suspensório. Curioso, apliquei melhor os óculos, e vi: era o número 846, em algarismos feitos a agulha, como esses que encontramos na roupa ao recebê-la da tinturaria.
— Que é isso, doutor? — indaguei.
O jovem advogado baixou os grandes olhos negros sobre o seu busto sem colete, em que a camisa de zefir se desfiava em alguns pontos com uma elegância de varanda de rede, e explicou, com um sorriso superior:
— É o número da calça.
— Você tem oitocentas e quarenta e seis calças? — estranhei, arregalando os olhos e parando a xícara a meio caminho da boca.
O Dr. Alfredo olhou-me com irreprimível piedade, e, lamentando intimamente a modéstia dos meus recursos, respondeu-me, apenas, num doce insulto à minha pobreza:
— Das de flanela...
E continuou, solene, a tomar o meu chá.
Humberto de Campos