ALEGRIA COM O CIRQUE DU SOLEIL
Diferente da maioria das crianças, nunca me encantei com circos: as poucas tentativas de minha mãe foram um completo desastre: inexplicavelmente, eu achava os palhaços tristes, tinha medo dos trapezistas caírem e me apavorava com os domadores de animais e seus chicotes. Voltava aos prantos para casa, uma tragédia. Mais do que ninguém, entendo perfeitamente bem a expressão: “circo dos horrores”...
Semana passada, porém, com ingressos para o Cirque du Soleil, fiquei lutando muito comigo mesma: vou ou não vou? – eis a questão. Queria, mas temia, ao mesmo tempo. Para quem nunca vivenciou esse pânico infantil, há de achar até engraçado uma pessoa adulta com este conflito; mas todos sabem como são fortes as vivências de criança e como elas acabam muitas vezes marcando a vida da gente pela vida afora. Já havia visto a Companhia várias vezes na televisão, e sabia que não havia animais. Pelo menos com essa parte eu não me preocuparei. Pesei, refleti e afinal resolvi enfrentar (e tentar vencer) o pavor das reminiscências antigas. Ainda bem: mudou o circo ou mudei eu? Mudaram os dois.
O Cirque du Soleil não é um circo comum, mas um novo circo, como é denominado pelos seus próprios criadores. A companhia canadense, fundada em 1984 por Guy Laliberté e Daniel Gauthier, “abandonou Abandonou a estrutura convencional dos circos, tirando os animais de cena (eliminando assim uma das maiores despesas de um circo e também a mais controversa), mudou o foco para o público adulto (o que antes era uma diversão para crianças, se tornou uma paixão para os adultos) e baseou seus espetáculos na linguagem corporal, na sofisticação intelectual do teatro e do balé e na utilização de tecnologia. Ao fazer isso, o Cirque reinventou o modelo de preços das entradas” – escreveu com muita propriedade Viviane Rodriguez, colunista do site bonde <www.bonde.com.br>. No começo eram aproximadamente 70 pessoas e, hoje, a equipe é de cerca de 900 artistas, sendo que em seus 13 diferentes espetáculos que giram o mundo (sete espetáculos itinerantes e outros seis encenados em lugares como Las Vegas e Disney World) já emprega mais de 3.000 profissionais de 40 nacionalidades (25 integrantes são brasileiros) e que se comunicam por mais de 25 línguas, o que significa que apresenta em elenco artistas internacionais de todas as partes do mundo.
Alegria, segunda apresentação do Cirque de Soleil no Brasil, é um espetáculo grandioso, de extremo bom-gosto (até os elementos grotescos incorporam-se magicamente ao universo circense) e os ginastas apresentam-se em um clima de tanto perfeccionismo, que mesmo com a respiração suspensa muitas vezes, nos mergulhos de vôos livres, não pensei no pior nem uma vezinha sequer – acreditem. Aliás, nem dá muito tempo para pensar, tal a sucessão de espantos e encantos. Os ginastas são verdadeiros bailarinos aéreos, o mesmo acontecendo com as contorcionistas, que mal pousam no chão – de tão leves às vezes parecem flutuar. Fiquei extasiada com o número dos arcos. Todos que fizeram ballet com aros ou os que brincaram de bambolê sabem a dificuldade de se movimentar um único, da cintura ao pescoço, sem deixá-los cair. Pois a acrobata rodopiava seis, sete, ao mesmo tempo, arranando quase que uma reação hipnótica do público. E, o mais impressionante: todos os ginastas e acrobatas executam seus pulos, saltos precisamente compassados com a música, exibem-se em uma sincronia exata, impecável.
Realmente é uma concepção nova de espetáculo, que explora as múltiplas possibilidades do circo, com toda a riqueza de seus personagens e dimensões oníricas e simbólicas, mas vai além. Envolve música, dança, mímica, humor, comicidade, teatro (o palco inclusive não é um picadeiro, mas tablado que lembra uma semi-arena de teatro), canto, belos efeitos de luz, e figuração cênica às vezes aparentemente surrealistas, que nos provocam sensações inusitadas e, de alguma forma mostra que a Alegria, vista através do circo – do teatro do mundo – é, de alguma forma, uma alegria feita também de flashes de gritos, assaltos à própria alegria, raivas e tristezas serenas, como escrito por René Dupéré, em Alegria, música-tema principal do espetáculo, uma letra que define o algo mais que o Cirque du Soleil propõe: uma alegria, mais viva ainda, por ser vivenciada plenamente, também em suas contradições, riscos e cortes e contrastes:
(...)
Allegria
Del delittuoso grido
Bella ruggente pena, seren
Come la rabbia di amar
Allegria
Come un assalto di gioia(...)
Allegria
Como la luz de la vida
Allegria
Como un payaso que grita
Allegría
Del estupendo grito
De la tristeza loca
Serena
Como la rabbia de amar
Allegria
Como un asalto de felicidadFonte: http://vagalume.uol.com.br/cirque-du-soleil/alegria.html
(Eis minha tradução bastante livre e conotativa: alegria/ do grito delituoso (transgressor)/ bela aflição rugidora (que urra) será / como a raiva de amar / alegria/ como um assalto de jóia (...) alegria/ como a luz da vida/ alegria / como um palhaço que grita / alegria / do estupendo grito da tristeza louca / serena / como a raiva de amar/ alegria / como um assalto à felicidade (um roubo, ou arroubo... de felicidade).
São duas horas e quarenta minutos de espetáculo e, ao final, sentimos que continuaríamos assistindo a mais duas outras horas e quarenta minutos, talvez... Sugiro a quem for que leve cartão de crédito ou dinheiro extra para o pote grandão da saborosíssima pipoca, cujo aroma no intervalo inunda deliciosamente todo o ambiente, e também para as fabulosas máscaras e belas roupas exclusivas da grife Cirque du Soleil, expostas no hall de entrada/saída. Há ainda a exposição e venda de CDs, fotos, livros da Companhia, programas do espetáculo, adereços usados, obras de arte de rara beleza, originais e fascinantes. Outra recomendação é que você vá bem cedo, não deixe para sair na última hora, principalmente se você não conhece ainda o Metropolitan. E divirta-se com o espetáculo, que faz um bem danado para a gente. Não se esqueça de, quando aplaudir entusiasticamente os artistas, incluir neste aplauso também o Bradesco, que nos proporciona a oportunidade de assistir no Brasil a estes brilhantes artistas. Só mesmo um grande banco para patrocinar um grande espetáculo como este.
Particularmente, ainda tenho mais um agradecimento especial a fazer: ter revisto meus sentimentos, através do primeiro circo que realmente me entusiasmou na vida (e do primeiro circo bom a gente nunca esquece...). É muito bom me sentir liberta de sentimentos negativos, que tantas vezes perturbaram e/ou impediram minha Alegria, assaltando-me esta jóia... O Cirque du Soleil realmente faz jus ao nome que tem: ele ilumina o coração e contenta a alma até de quem, como eu, achava que detestava circos.
Leila Míccolis