DEZ ANOS DE SOLIDÃO

            Entre as miríades de imagens que povoam minha memória dos meus tempos de seminarista em Mariana-MG, ressalta-se a cena de minha chegada ao Seminário Menor, aonde me levara meu Tio Viçoso (Viçoso é também o nome do primeiro bispo daquela primeira capital das Minas Gerais, fundador do bi-centenário seminário). Jamais esquecerei aquela cena, em que eu, menino de onze anos, estava numa sala imensa, onde se ouvia a algazarra dos meninos. Senti, então, pela primeira vez em minha vida, solidão, uma solidão avassaladora, uma solidão que haveria de me acompanhar pelos dez anos de minha estada no inferno, às vezes céu, marianense.
            Solitário, extremamente solitário, passei o crepúsculo de minha infância e toda a minha adolescência, enfiado nos estudos e enfronhado nas orações, porque eu tinha um projeto, acalentava um sonho, mirava um horizonte: eu queria ser santo. Sim, eu seria um santo padre, um padre santo, um sacerdote aureolado pela santidade, e o melhor meio de atingir o céu de São Luiz de Gonzaga era rezando, estudando e meditando. Eu não haveria de cometer pecado algum, nem venial, muito menos mortal, e, se alguma sombra de dúvida pudesse embaçar o cristal límpido de minha alma, eu correria até o confessionário, ali atrás do altar-mor, abrindo-me ao Pe. Cruz - Pe. Antônio da Cruz, um lazarista que eu amava e que tinha fama de ter sido, no Caraça-MG, um tirano -, que me assegurava da minha intacta santidade; ele me dissera um dia, numa das sessões de direção espiritual, que eu “passava em brancas nuvens”. O ex-severo reitor referia-se às turbulências da adolescência.
            No meio de tantos meninos, eu tinha um amigo, um amigo, que contemplava à distância: o Luizinho, Luiz Gonzaga de Carvalho, um garoto bochechudo, de Chopotó-MG (a cidadezinha da “Lira de Chopotó”, uma banda musical muito famosa). Herdeiro de verdadeira aristocracia intelectual mineira, Luizinho me aparecia como modelo de intelectualidade, de escritor, de orador, embora eu viesse a saber, muito mais tarde, por ele mesmo, que aquele anjo barroco em carne e osso estava mais para diabinho...
            Em solidão e santidade, fiz as humanidades greco-latinas, cursei filosofia e fui designado para estudar teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, cidade que me deslumbrou pela beleza ímpar. Hóspede do Colégio Pio Brasiliano, amarguei, de novo, e mais intensamente, a solidão, aquele solidão primeira de meus tempos marianenses. Mas, então, eu não mais estava numa redoma de vidro, protegido dos perigos do mundo; eram todos inteligentíssimos, geniais e eu era apenas mais um, talvez anônimo. Nem a fé me segurou mais, no meio da crepitante fogueira das vaidades. Esqueci-me de querer ser santo e fui declarar ao Pe. Müller (nem sei se jamais soube o seu prenome, tão importantes são os jesuítas...), um duplo suíço do meu Pe. Cruz português, minhas dúvidas quanto à religião e seus dogmas. O diretor espiritual ouviu-me atentamente e disse que eu teria duas opções: ou ficar ou ir-me embora, largando a carreira eclesiástica. Preferi tomar um trem para Paris a fim de estudar língua e fonética francesas na Universidade Católica da cidade-luz. Depois, continuei a viver minha solidão estudiosa na Bélgica e em Londres, onde fui hippie e descobri o mundo que jamais pudera ver nem em Mariana, tampouco em Roma.
            Foram dez anos na Europa, viajando, inclusive, até o Oriente Médio a fim de resgatar minhas origens libanesas. Já não mais queria ser santo, tampouco acreditava em santos, a não ser em Nossa Senhora, em minha mãe e no Pe. Joaquim Maia - Pe. Maia, ex-reitor e ex-diretor espiritual do Seminário Maior, um ser musical, que amava Beethoven sobre todas as coisas, e que regeu, durante anos, a orquestra sinfônica daquele educandário. Depois que ele foi, literal e injustamente, expulso do Seminário, a orquestra acabou; lembro-me de vê-lo, debulhado em lágrimas, ao se deparar com os instrumentos musicais jogados, quebrados, arruinados, detrás de um palco que não mais era palco de memoráveis exibições.
            Hoje, no mosaico da solidão, que me constitui, jamais perco de vista o menino, que se descobriu, em Mariana, solitário, tão solitário, fervorosamente solitário. Do meu porto, em Saquarema-RJ, onde me ancoro, há bem mais de dez anos, viajo pelo Brasil e pelo mundo, mas, sobretudo, isolo-me entre livros e lembranças e meditações, contemplando, com indizível alegria, meus três netos, que crescem em idade e sabedoria. Se não sou padre, muito menos um padre santo, tornei-me professor, profissão para a qual acho que me preparei toda a minha vida e onde gozo de uma conquistada solidão, rompida, quando permito, pela mais eufórica das felicidades.
           Hoje, chove em Saquarema. O verão vestiu-se, inesperadamente, de cinza, e até escuto aquele sabiá-laranjeira, que cantava, dolente, nos idos de Mariana, cravando perene melodia em minha memória.

Latuf Isaias Mucci

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