Vinte e tantos dias de sol e mar e gás e gatos. No Rio para o Natal com “a tribo” – filhos, neta, nora & família, ex-mulher e sua trupe (marido, irmãs, sobrinhas), festas werneckais & coisas quetais –, ganho de presente o direito a férias inauditas. Fico a cuidar dos gatos da Ulla, enquanto ela passa o Revéillon em Viena com sua amiga Bárbara, a jovem concertista filha de minha querida Mariana. Pai é pai. Gato é gato. Não eu, é claro, mas os próprios. Nero & Maria, dois alentados felinos que não dão lá muito trabalho, e sequer falam comigo – fazem solene & sonolenta questão de me desconhecerem. Como Ulla só fala com eles em italiano – vá lá alguém tentar entender a Wernecklândia! – os sonsos siameses fingem que não escutam o meu minerês, enquanto desfilam lânguidos & altivos. Solitário, mas solidário, dou-lhes água e ração e – hábito que se faz cotidiano – desço pra praia, o mar do Leme em frente.
O velho-novo Leme de meus primeiros tempos de Rio de Janeiro. No canto da praia, ainda lá estão o quartel e a pedra-pedreira. No alto, a tremular aos quatro ventos, a bandeira. Isso me faz lembrar de coisas em minhas caminhadas diárias até quase o Posto Seis. Como se coisas não fizessem a gente se lembrar de coisas – coisíssimamente falando, bem entendido. Na volta, Posto Seis-Leme, do Hotel Miramar ao Méridien, vou mirando o miramar do fim da praia e volta sempre um velho poema feito ali, lá se vão anos & fins-de-anos – quantos mesmo? Deixa pra lá.
À tarde, quase sempre caminho ao vai-da-valsa pelo Centro, no “turbilhão da galeria”, a cidade-paisagem presa na retina – essas ruas tão minhas, que passo e repasso e revivo agora. Assim que cessa sua cantoria no Teatro Municipal, saio com Neti Szpilman a tiracolo – a soprano de óculos escuros e chapelão à la Fellini , diva é diva. Nós dois de braços dados com o jovem e bem-humoradíssimo octagenário Octávio Mello Alvarenga, fã de “ópera, operetas, operárias e possíveis funcionárias públicas”, colunista do Globo, expert em agriCultura, não fora ele mineiro de São João del Rei. Três figuras de almanaque: Neti-de-Neti-vestida; eu preso aos meus suspensórios, e Octávio num chiquê só, também de suspensórios, mas encobertos por seu bem-cortado terno de tropical inglês.
Há uma batucada e o jovem Octávio ensaia alguns passos de samba pela Rua do Ouvidor. Poucos, que logo a Neti corta o barato de nosso passista: “Pô, Seu Octávio, olha o vexame!”. Mas é sambando que ele entra, e nós também, num bistrô da Rua do Rosário e logo comanda champagne pra comemorar nosso encontro. Faço modestamente tintim com meus drinques finos – e tudo é muito bom, muito bem. À noite, cinema e jantar na Barra com a Regininha. Nete-Regininha, meus amores, minhas amigas queridas: presenças obrigatórias sempre que no Rio aporto. Não sei o Rio verdadeiro, o Rio deveras sem elas.
Mesmo sabedores de minha missão na gatolândia, o casal de poetas e velhos amigos Cairo & Denizis Trindade liga convidando prum “luau poético” exatamente na Praia do Leme, “assim que você botar os gatos pra dormir”. Vem também a Kyvia Rodrigues, a poeta-musa Kyky-Doris Day de meu último livro de poemas. É aniversário de outra poeta, a Marla, que mora no Leme, aqui ao lado, exatamente como o pecado. Assim meio que feminino de Marlo, Marla não tem nada de “mala”, como podem pensar os mais apressadinhos maldizentes. É antes alegre e bela morena, queimada de sol e plena de bem-sacados dizeres. Antes, damos uma passada na casa da poeta Clauky Saba, onde (re)encontro Adriana Monteiro. Não minha ex-mulher, mas a poeta – arre, haja poetas, sô! – Adriana Barros Monteiro. Não resisto à pergunta de sempre: “você já foi casada comigo? É que ando meio esquecido!”. Risos e mais risos, nossas risadas de sempre. E então, ao luuuuaaaauuuuu!
É noite alta quando voltamos ao Leme. Há um luão, um luau e um violão: atabaques e muitas vozes na areia. Cantamos e cantamos e falamos poemas pra lua cheia. Não há como não lembrar de meu velho poema, “Noturno do Leme” feito naquele exato lugar, tempos e tempos atrás, numa noite de não mais se acabar. Mas não falo o meu poema, entre tantos poetas e seus falares. Em silêncio, e com um beijo, dou de presente de aniversário pra Marla meu livro Revisita Selvaggia, onde se encontra o poema, lá dentro do Selva Selvaggia velho de guerra. Falar em guerra, olho pra esquerda, lá pro alto da pedra no fim da praia, e vejo que a bandeira – símbolo da Copa e da ditadura na cozinha-Médici dos anos 70 – ainda lá tremula em meio à noite:
entre carros namorados
luminosos lambuzando a aurora
entre o hot dog e a coca-cola
a bandeira nos controla
até quando a bandeira
vai e vem se equilibrando?
o navio o leme os bares
os bêbados todo mundo
tudo é afável
e terrível
até a perspectiva
da aurora
até o hot dog
e a coca-cola
Tudo ainda é tal e qual – e no entanto nada é igual. Isso é Caetano. Ou não: há controvérsias. E logo amanhece. Dou de papá aos gatos e volto pra praia a caminhar e mergulhar, mergulhar e caminhar, que essa vida não é só trabalhar e dar aos gatos papá: tem que ter pernas-pro-ar. E logo à frente 2007 fica pra trás e se nos “escarpa” meio demente. E Kátia D´Angelo me chama pro final do ano na Região dos Lagos: “casa da Lola em São Pedro d´Aldeia. Da Lola, lembra-se?, a minha amiga, filha do Paulinho Soledade”. Pois é, como resistir àquele tão sozinho, tão minúsculo, tão “um pequenino grão de areia” a namorar estrelas? Deixo os gatos sob os cuidados da “tia Vera da Ulla” e nos mandamos eu e Kátia, noite-adentro-estrada-afora, rumo ao mar de Búzios & Arraial do Cabo (Frio). Nunca um fim-de-ano como este, mareado de sol e gruta azul e vou-te-contar. Não dá mesmo pra contar – e não conto. Nem “depois eu conto”, como diria a Nina Chavs. Depois, não conto mesmo.
De volta ao Rio, eu e Ulla – que também chega assim de Londres como quem não quer nada. Ou melhor, quer sim: “Papi, sabe que o gás do meu banheiro tá com problema, né? Pois é, dá pra ficar mais um tempo e tomar conta do gasista que vou chamar?”. Pai é pai. Gás é gás. Fico mais “gase” uma semana, já que Ulla tem que cuidar de seus pacientes de fisioterapia o dia inteiro. Lá fico eu com Seu Antônio, um cearense bonachão e cheio de gás & histórias. Sem mar, sem praia, que sou um mestre-de-obras consciente, ora pois. No máximo, me deixar ao largo da noite pelo velho Baixo.
Uma semana ou mais de Baixo Leblon & café & drinques finos & velhos-novos amigos/amigas all night-aforadentro. Jovem é jovem, né mesmo? E a gente “somos” assim “lesmo”. O abstêmio não invalida o boêmio (evoé, Antônio Jaime!). Na Livraria Letras & Expressões, que nem “farmácia 24 horas”, varo as noites no Corujão Poético – feira de vaidades e pouca poesia, na verdade.
Mas lá encontro uma pá de amigos: da Frenética Lidoka ao Dzicroquete Bayard. E poetas & músicos & boêmios de estirpes várias: o poeta Ricardo Maia (sobrinho e fã ardoroso de seu tio, o cartunista Romerinho, meu velho amigo da adolescência em Cataguases, e que se foi há muito) e sua namorada, Suely Capobianco; um papo-cabeça com o cineasta Abelardo Carvalho; a reluzente Luzmarina (ah, Luzmarina, com esse nome não precisava desses cabelos, desses olhos, dessas curvas todas!); o ator e também poeta Eduardo Tornaghi; Cairo & Denizis; Tânia Ferreira (filha de um dos três “Ferreiras” que assinam a marchinha famosa, “Me dá um dinheiro aí” – qual deles, Tânia? Você acabou não me dizendo: o Glauco? O Ivan? O Homero?); Dudu, baixista que tocou com a Gal e que é agora o diretor de tv Eduardo Vasconcellos; a poeta de “alma-de-poeta” Andrea Paola, a cantora Andréa Dutra (“a de voz belíssima”, evoé, meu Luiz Linhares!), Kyvia-Ky-Ky-La Belle; o querido amigo e violonista Cadu; o poeta Ruggero, velhamigo novo; Adriana – você-foi-casada-comigo? – Monteiro de Barros; a poeta-performer Cristina-maiakovskimente-Terra; a atriz mineira & muito-gracinha Glauce Guima, a cantora carioca Marysa Alfaia (amiga querida que mora em Barcelona e que eu não via “desde muitos anos passados”) & etc & tal & todo mundo & coisa & loisa. Esses adjetivos todos, salpicados de pontos-e-vírgulas, só pra dizer que também os amo, como aos amigos – e os uso, mesmo quando em desuso. Verão tem dessas coisas.
Ufa! Que tudo é muito prum poeta agora e de novo mineiro de pacataguases. Gatos & gás nos conformes, volto pra Minas – que Minas sim, meu caro Drummond, ainda há demais. Pela estrada, um poema de ocasião, que vai pro Ricardo Maia e pra Marysa Alfaia:
Zoeira & Alfaia
para marysa & ric
antes que em desgraça
nosso mundo caia
um quê de chalaça:
só zoeira e alfaia.
diz ricardo maia:
– eta pau-pereira!
E ainda outro, direto do Bar do Alemão da Rio-Petrópolis, que vai naturalmente pra quem de direito, a Frenética Likoka e o Dzicroquete Bayard Tonelli:
bye, rio: bye-bye
para Lidoka & Bayard
catito e sestroso
de mar-mareado
na volta do rio
só, só um bolero
anético-estético
leves, esqueléticas
bailar e bailar
com belas frenéticas
e nelas restar
– patético, pá!
no bar do alemão
rio a remoer:
longe dos pivetes
comer e comer
todos dzicroquetes