CIRLENE
Ela era extremamente tímida. Retraída, quase invisível, de uma discrição perto de constrangedora. Não se tornara impessoal, porque se vestia diferentemente das mulheres de seu tempo. Era a década de sessenta. Suas roupas, saias e vestidos, variavam e se mesclavam nas cores preta, branca e cinza, de uma severidade colegial. Esbarrava a barra da saia no tornozelo e a manga da camisa abotoava-se no punho, fosse qual fosse a estação.
Delicados e lentos seus gestos, quando ousava falar, parecia pedir licença e sua voz era pouco mais que um fio. O ouvinte desavisado, que não se aproximasse o bastante, percebia sons indefinidos como gemidos de gato recém nascido. Casada com um homem robusto, trabalhador como um boi de carro, gabava-se por nada faltar para a esposa e os dois filhos, para quem, segundo ele, dava “deumtudo”.
Conheci o casal, assim, na minha infância, vida pacata, dinheiro entrando, paz no lar.
Contra toda expectativa, Cirlene resolveu voltar aos estudos. Casara-se muito cedo e, naquele momento, não entrara ainda na casa dos trinta. Essa era o personagem número um dessa narrativa.
Altivo, homem moreno, brilhantina nos cabelos que acomodava as madeixas encaracoladas. Cheiroso, como um pé de malva. Era atrevido, de pouco falar, um verdadeiro come-quieto, um garanhão para muitos. Apesar de tudo, parecia viver para os seus, esposa e um casal de filhos.
Não é do meu conhecimento como o personagem número um e o de número dois, mais do que se encontraram, se atraíram. O fato é que a lebre virou gata. E o felino mudou a pelagem.
Cirlene, num piscar de olhos, se transfigurou. Os cabelos apareceram soltos, ao vento, unhas pintadas em cores vibrantes, como das próprias roupas que passou a vestir, curtas e justas. Mostrou ombros, fez caras e bocas, soltou a voz e a franga, como se costuma dizer...
O pior estava por vir. Ela, deixou o marido e abandonou os filhos; ele, dispensou a tolerância velada da mulher e o amor dos filhos e se mudaram para um endereço ignorado e não sabido.
Também não sei se ainda estão juntos, mas sei que, até os meus dez anos de idade, nunca havia vivenciado uma revolução como aquela, a não ser a do golpe militar de 64.
Dora Tavares