LEMBRANÇAS
Uma vez, li uma crônica da Clarice Lispector, em que ela contava que, ao escrever uma crônica, sentia-se mais exposta do que quando escrevia um livro de romances ou de contos. Concordo. A crônica, muitas vezes, é o reflexo de nossos sentimentos e o que achamos sobre a sociedade em que vivemos.
Lembro-me que quando era mais novo, sentia esperança de mudança, ao ver minha mãe chegar em casa com tudo novo: livros, cadernos, lápis, canetas e borrachas.
Prometia intimamente estudar com mais afinco, fazer amigos, curtir a vida como todo mundo e ter mais cuidado com o material escolar, para não perder mais nada.
Porém, ao longo do ano, repetia os mesmos erros. Minha alma preguiçosa dominava meu corpo, ganhando sempre a batalha.
Não conseguia me disciplinar para organizar o meu tempo. Aí, o dia terminava num piscar de olhos.
Na escola, ficava doido para voltar para casa. Só queria comer, dormir a tarde inteira e ficar horas no chuveiro, onde secretamente pedia à água que levasse todos meus problemas e pensamentos ruins...
Algum dia, terminarei essa crônica. Agora, no entanto, basta-me fechá-la com um trecho que me emocionou bastante:
"A vida nos apartará. Mas formamos certos laços. Acabaram nossos anos de infância, da irresponsabilidade. Mas forjamos certos elos. Acima de tudo, herdamos tradições. Mas forjamos certos elos. Acima de tudo, herdamos tradições. Estas lajes são usadas há seiscentos anos. Nestas paredes estão inscritos os nomes de guerreiros, estadistas, alguns poetas infelizes (o meu estará entre estes). Abençoadas as tradições, todas as salvaguardas e limitações! Sou extremamente grato a vós, homens de trajes negros, e a vós, mortos, pelo vosso exemplo, pela proteção; apesar de tudo, porém, o problema permanece. As contradições ainda não foram conciliadas. Flores movem suas cabeças contra a janela. Vejo pássaros selvagens, e instintos mais selvagens do que os mais selvagens pássaros erguem-se do meu selvagem coração. Meus olhos são selvagens: meus lábios, firmemente comprimidos. O pássaro voa; a flor dança; mas eu ouço sempre o embate monótono das ondas; e a besta acorrentada pateia na praia. Pateia sem parar." (AS ONDAS, de Virginia Woolf, editora Nova Fronteira).
Eduardo Oliveira Freire