OVERDOSE DE PALAVRAS

Ontem comprei todos os livros que eu tive desejo e aproveitei para ter um surto de intelectualidade. Embora, quando estou muito empenhada a ler, perco todo o referencial da escrita. Sinto-me excluída da corrente sangüínea literária. Assim, tornei-me o elemento passivo. E absorvi, com-pul-si-va-men-te, cada palavra, mesmo que o ato culminasse na subtração do meu texto semanal. Iniciei por James Joyce: “... estou aqui para ler, marissêmen e maribodelha, a maré montante, estas botinas carcomidas.” E vou acrescentando outros, Leminski por exemplo: “tudo o que respira, conspira” e depois Emile Zola, Baudelaire, Virgínia Wolf e durmo, literalmente, na companhia dessa gente das letras.

Lembro-me de que, antes de dormir, jurei - diante das encadernações recentes e antigas - nunca mais escrever. Deve ter sido em razão da intensidade do que vivi. Fiquei meio envergonhada. Fui longe demais. Avancei pra dentro de uma zona desconhecida. Caminhos nunca dantes percorridos, vias nebulosas, falta de sentidos e uma quase loucura na tentativa de compreender as idéias. Palavras, com faces ocultas, me conduziram num ritmo agudo, frenético, e eu querendo conhecer a parte escura, querendo mais, mais... numa intimidade inesperada, ousada, aflorada, êxtase! Palavras tão cuidadosamente polidas que se tornam afiadas como um punhal e atravessam a alma, o pensamento, o tempo. Palavras que modificam a história. Que modificam os homens que carregam a história. Palavras reordenando o caos. Palavras e palavras.

Hoje quando olhei no espelho pela manhã, pensei: decerto essa não sou eu. Não são minhas também essas mãos que trêmulas deslizam o batom errando o contorno da boca. Todos os canais da minha cabeça ainda estão bloqueados por palavras. Mas saio de casa por instinto. Caminho por instinto. Toda vez que quero pensar, caminho. E é tão instintivo que não consigo explicar. É como aquelas tartarugas da areia que quebram o ovo e vão direto para o mar. E eu vou para as ruas. A tartaruga vai para as ruas. Hoje me sinto tão tartaruga quanto elas. A diferença entre nós talvez seja a carapaça que eu não tenho. E hoje eu queria esconder o rosto. Sinto-me escandalosamente exposta. Como uma mulher que acorda de uma noite de amor e sai com os cabelos molhados tendo a sensação de que todos a olham e serão capazes de adivinhar a noite que viveu. E, na verdade, serão capazes mesmo, porque uma mulher que ama se denuncia. Mesmo com toda experiência, com todo aprendizado, sempre escapa um detalhe, um vestígio. E numa fração de segundo ela se trai. E se alguém ficar em silêncio perto dela, será capaz de ouvir o canto da sua alma. Acho que me sinto meio assim. Com um canto imaginário dentro de mim. E por onde vou, segue comigo a sensação de estar sendo observada. Talvez eu necessite desse olhar para continuar existindo. Todo mundo necessita. Mesmo que na ficção. A vida fictícia salva a vida não vivida. Ou seria o contrário?

Molho os olhos com a luz do dia. Ou me molho na luz do sol. Um antídoto pra qualquer embriagues. Não se doma a vida. Embora ela seja frágil como uma lágrima. Volto para casa como as tartarugas voltam para a areia e tomo atitudes primárias. Como granola com iogurte, passo babosa no cabelo e vejo TV. Um sujeito vendendo uma máquina para lavar calçadas e carros.... outra máquina pra fazer crepes suíços. Sinto vontade de escrever. Sinto vontade de falar das coisas comuns acontecendo lá fora. Volto ao espelho, agora sou eu com as minhas mais prosaicas argumentações, que essa intelectualidade não se adapta a mim, não se adapta mesmo.

Lucilene Machado

« Voltar