Água de Bica

Quando nasci nenhum anjo torto me disse: — “Vá Diego, vá! Vá pro raio que te parta!” Nada. Nascia e ponto. Era final de ditadura. O Milkybar não era Milkybar, era em sua austera simpatia o Lolo. Lolo, vejam vocês. Lolo é de uma delícia gástrica: Lolo... Meus olhos viam pela primeira vez a realidade, ouviam pela primeira vez a realidade com o impetuoso apetite de pernilongos, gritava um grito pulmonar de rebento. E Sônia Braga, nesta época, incendiava doces idílios. Beijava com uma volúpia impregnada de paixão e suicídio. Sarney pensaria em aparar sua andorinha labial quando fosse presidente, era promessa. Só quando fosse Presidente. O que pensou Sarney com a morte de Tancredo?  — “Ligarei para o Ronald Reagan dizer-lhe que sou Presidente. Agora sou o Presidente... Dir-lhe-ei que meu bigode foi aparado, mas só dos lados. Um pouquinho dos lados”
A verdade é que nasci um ano antes. A liberdade gestante dava piruetas de alegria. Imagino, inclusive, o seguinte: No discurso do Tancredo, uma massa uniforme urrando seu desejo incondicional de ser livre. Camelôs, donas de casa, estudantes, gritando: — “Diretas já!” E enquanto o Tancredo lhes dirigia a palavra, o Sarney, na ponta dos dedos, enrolava as asas crespas de sua andorinha como se a lúdica distração pudesse oprimir o pranto emocionado. Ruas, avenidas, pessoas sacolejando dos prédios uma Ave-Maria e vários enfartos. Sim, o brasileiro naquela hora enfartava, enfartava com sua humilde felicidade. Trotava de quatro e as dores cardíacas, patrióticas cintilavam...
Não presenciei o enfarto generalizado. Não vi o Tancredo acordando de madrugada com dores estomacais. Agora penso se a menina que – esta sim eu vi – vi outro dia sabe de Tancredo, das caras-pintadas, do topete do Itamar. Ela tinha uns sete anos e uma aura de Byron. Escorria-lhe pela face a traquinagem e uma curiosidade diáfanas. Desço as escadas com pressa. Acendo meu cigarro. Iria me atrasar para o almoço com minha Pequena. E numa daquelas brincadeiras de criança, aquelas que se pergunta o que seremos quando crescer, ela responde: — “Quando eu crescer eu quero morrer bem bonito!” Havia em mim um sobressalto dalilesco ao ouvir a inocência da afirmação. Paro e penso na minha tia avó morta. Ela em seu ataúde e os olhos cerrados, a falta de vontade de comer o bolo de fubá. Meu primeiro cadáver e não fiquei alarmado. A amiguinha, ao ouvir a menina, também não ficara alarmada. Morre-se todos os dias, pensei. E ela, quando crescesse, iria morrer.
Naquele momento me senti um idiota. A ilusão não existe. A verdade mastiga os ossos em pratos rasos. Era como se todos agora rastejassem de quatro diante da declaração infantil e não do discurso do Tancredo. Enfartávamos, enfartávamos na falta de coerência, na economia de discurso “Quando eu crescer eu quero morrer bem bonito!”. Essa menina num palanque, gritando para milhares: — “Quando eu crescer eu quero morrer bem bonito!” E repetindo, sem vírgulas: — “Quando eu crescer eu quero morrer bem bonito!”. Matar-nos-ia... Meu cigarro tremulou um pouco nas mãos...
Mas como eu estava falando anteriormente, nasci e nenhum anjo torto me disse: — Vá Diego, vá! Vá para o raio que te parta! Nada. Senti-me órfão, órfão de anjo e neste efêmero e único instante desejei ver Sônia Braga, morrer bem bonito em seus braços, como  suicida. Um suicida que cresce e morre bem bonito à mercê de sua própria paixão. Sem vírgulas, sem ilusões e com um único grito salivando no canto da boca: — “Quando eu crescer eu quero morrer bem bonito!”.

Diego Ramires

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