John Goes, Bells

quando john lennon morreu, eu ainda não sabia disso: estava zanzando pelo centro da cidade com um copo de vinho na mão e uma garrafinha quase cheia na bolsa, uma bolsa de pano marron que me acompanhou por muitos anos.

as ruas estavam cheias de gente fazendo compras, cada loja com o seu papai noel batendo sininhos, suas barrigas de travesseiro, pagando aquele mico pra levantar algum.

a tarde estava quente, mas nublada. talvez ainda chovesse, e aí o arrudas traria mais notícias ruins.

no bolso da minha camisa, o bloco de anotações. na bolsa, alguns exemplares do meu primeiro livro, que eu pretendia vender à noite, nos bares da zona sul.

eu era um poeta marginal, como se dizia, e estava só dando um tempo até a hora de cair na vida. eu não tinha emprego fixo nem móvel nem sabia o que era free-lance nem sabia fazer nada que pudesse me dar alguma grana além vender meu peixe (dinheiro que, mal entrava, ia para os bares e sebos do maletta).

talvez byu ainda aparecesse, ele também tinha feito um livro e às vezes a gente saía juntos vendendo nossa poesia. mas naquela hora ele estava (só mais tarde fiquei sabendo) no cine royal, dando uns amassos em rose.

portanto eu estava de bobeira, tentando acabar com o vinho e buscando inspiração pra um improvável poema natalino. nessa época eles estacionavam caminhões em algumas ruas do centro, vendendo vinho e uva vindos "diretamente do rio grande do sul". devia ser de péssima qualidade, mas a gente não queria nem saber: era barato e ninguém se incomodava de sair bebendo pelas ruas como se a cidade vivesse uma bacanal permitida.

na galeria ouvidor ouvi uma (day tripper), duas (don't let me down), três (help!) canções dos beatles. quando tocaram imagine com aquela tradução babaca da letra, desconfiei que alguma coisa estava errada.

perguntei pro balconista da pastelândia e ele me contou que um filho da puta qualquer tinha enchido john lennon de azeitonas.

fiquei triste, claro, e aproveitei pra comprar mais vinho.

achei que aquele momento merecia uma atitude de protesto, e por isso sentei nos degraus do pirulito da praça sete com o bloquinho e a caneta nas mãos.

escrevi alguns versos (anos depois publicaria a rima "vôos / beatles") sobre a morte, mas aquela, em especial, não dava rock.

pouco depois byu chegou com sua namorada. contei pra ele o que tinha acontecido, mas ele já sabia.

ficamos os três ali, respirando fumaça até escurecer, tentando lembrar todas as músicas dos beatles que conhecíamos (não eram muitas: esquerdistas de ocasião, quase só ouvíamos mpb.)

quando o vinho acabou, rose foi fazer compras pra sua família e nós dois fomos até a savassi traficar nosso bagulho.

mas aquela foi uma noite ruim de um dia duro:
acabei voltando pra casa mais cedo do que o normal
e sonhei que tinha tudo dos beatles
mas eu não tinha
nem tenho
nada
até hoje.

Sérgio Fantini

Do livro Belo Horizonte em verso e prosa, UFMG, 2008, Belo Horizonte

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N.E.: John Lennon foi assassinado em Nova York, em 08/12/2003.

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