Memórias do cerrado

Freqüentemente vou ao cerrado (DF), onde a vida me dá o abrigo do abraço de pessoas queridas. Uma coisa assim, do fundo do coração, que a mãe natureza nos proporciona para manter a alegria de um encontro ainda que relâmpago.

Apesar da crise nos aeroportos: dos sustos e das perdas de pessoas que sequer nós conhecemos, conseguimos em um final de semana nos encontrar milagrosamente: o pai, a mãe, o filho, as filhas, o irmão, as irmãs, genros, nora, a tia, netos e netas... e tempo houve até de falar do desenvolvimento de Prateada - uma cadela "vaimaraner" que também traz alegria pra vida da gente.

Tempo de verão. O dia pareceu mais longo, tanto assim que tivemos todos quase a mesma impressão de que daria tempo de fazer tudo ou quase tudo que sonhamos: contemplar os jardins do planalto; comer pamonha, deitar na grama, soltar pipa e observar a vida pelo caleidoscópio na feira de artesanato ou feirinha da torre, em Brasília. Não me lembro de um dia tão longo e pela vez primeira experimentamos driblar o próprio tempo que vez por outra teimava em anunciar o dia seguinte da partida.

Quando veio à noite, as crianças ouviram histórias tecidas de estrelas e catadores de sonhos que se misturaram aos personagens de sonhos shakespearianos... "ora, direis, ouvir estrelas..." Nesse ritmo, meus filhos e eu fomos tecendo as lembranças de quando morávamos no bairro da Várzea, em Recife, onde havia um portão que apelidamos de portão de Alice, a mesma do país das maravilhas. Nessa noite, a lembrança da ferocidade do tempo veio incorporado no coelho a dizer: é tarde, tenho pressa; muita pressa.

Apesar disso, o frio noturno do cerrado convidou a mais uma garrafa de vinho e foi exatamente o que fizemos, como fazíamos na Várzea – embora naquele tempo nossa economia nem desse para um gole de moscatel. Apesar dos tempos nús, meus filhos cresceram em meio a pilhas e pilhas de livros. Com essa lembrança, buscamos a livraria Rayuela para brindar o nosso encontro relâmpago e nossa memória de leitores antenados na América Latina: de Garcia Marques a Cortazar; de “ Cem anos de solidão ” ao “ Jogo da amarelinha " ou Rayuela . À luz desse encontro, dou conta de um hai-kai que hoje teci a respeito dos sonhos:

não, os sonhos não se foram
eles habitam na memória
das ovelhas negras

Graça Graúna

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