TIPOS DE RUA

           Quando a cidade sepulta no anonimato os seus tipos de rua, é sinal de que o humanismo desapareceu das esquinas e o tempo/relógio passou a controlar a vida dos seus habitantes.
            Goiânia já sepultou seus tipos de rua há muitos anos. Havia um tempo em que a cidade se afunilava no Grande Hotel do Bar Marabá, nno Mercado Central e até no então nascente Café Cultural. Esses lugares eram recantos preferidos dos tipos de rua, personagens que perambulavam pela cidade e eram vítimas de chacotas, de desprezo, goazações e até compaixão.
           Lembro-me de ter visto na cidade de Cuiabá um pequeno monumento a um tipo de rua, uma mulher representou para a comunidade um monumento inesquecível, quando a cidade ainda se encontrava nos quintais. E Cuiabá não a esqueceu. Está lá, em monumento. Se me perguntarem qual tipo de rua deveria ser monumentado em Goiânia, eu apontaria imediatamente o nome de Burro Preto. Como esquecer a imagem daquele crioulo metido a sebo, elegantemente vestido, de paletó e tudo, fazendo discursos ininteligíveis na porta do Grande Hotel? Quanto mais o povo aplaudia, mais ele se empolgava. Tenho uma foto com três personagens da história de Goiânia, assentados na calçada do Grande Hotel: o cronista Jurema di Guimarães, o romancista Eli Brasiliense e... adivinha quem? Todos de paletó, gravata e sorrisos.
           E "Seu Marido Morreu", quem se lembra dela? Andava pelas imediações do Café Central, com aquele saco de "trens" nas costas. Suja, maltrapilha, o vestido escondendo a fedentina do corpo, mas sempre no meio dos homens. A garotada passava e vinha a afronta.
           — Seu Marido Morreu, Seu Marido Morreu!
           Aí ela enfezava, espumava, xingava, chorava, esperneava, virava uma onça. Como último recurso, apontava o traseiro para a meninada e suspendia o vestido: "Aqui procêis, ó!". Era aquela correira. Os desocupados do Café Central aproveitavam:
           Olha aqui o dinheiro, toma.
           Ela se aproximava, com a mão estendida,o homem lhe entregava o dinheiro e falava:
           — Agora abraça aquele ali (e apontava para alguém que conversava, descuidado!)
           Com o rosto sujo, babando, ela caminha em direção ao homem indicado e lhe atarraca um abraço. A risada é geral. O homem foge, limpando a roupa e reclamando.
           Goiânia cresceu. Sepultou seus tipos de rua, atropelados na pressa dos automóveis. Mas fica a memória. De vez em quando, abre-se a cortina do tempo, e os tipos de rua vão passando, como por exemplo, a figura de João Cego, lá da Campainha. Religioso, assistia à primeira missa da Matriz, todas as madrugadas, e logo em seguida saía pelas ruas. Uma touca cobria-lhe a cabeça e os olhos. Na mão, uma corneta e uma bengala. Onde João Cego passava, ficava a rima:
           — Bom dia, dona Maria! Como vai sua fía?!
           Assim, alegre, vai João Cego pelas ruas de Campininha, anunciando sua passagem pelo toque da corneta. Perambulava por todo o bairro, cumprimentava todo mundo, era querido da meninada. João Cego morava na Rua Anápolis, tinha dois grandes olhos no coração. E por isso era alegre, inofensivo, poeta. Como esquecê-lo?

José Mendonça Teles

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