O Escritor e seus Personagens

Interessante como diferem as trajetórias dos protagonistas de uma história que se escreve. Alguns escritores munem-se de uma pessoa-modelo, como os artistas plásticos a basear-se em um modelo vivo, para criar. Esse protótipo pode ser pessoa revelada pelo escritor, ou oculta, nesse caso às vezes por estar ainda viva e não ser muito prudente dá-la a conhecer... Vários personagens passam para a ficção mais belos ou mais enfeiados pelo autor. Outros são incorporados à acontecência, ficando a ela associados, embora não tenham jamais passado as páginas da História, das estórias...

Há romancistas que anotam, meticulosamente, um rol de protagonistas, atribuem-lhes determinadas características físicas, espirituais, de humor, de caráter. E sofrem para mantê-los acorrentados à sua própria vontade. Outros deixam a própria verve criativa repassá-los. Jorge Amado, por exemplo, não raro usou o protagonismo de pessoas a quem conhecia bem. Já Zélia Gattai, sua esposa, ora na Academia Brasileira de letras, estreou com "Anarquistas , Graças a Deus", ondepessoas e acontecências de sua própria família, desfilam.

Eu costumo ser arrastada pelos próprios personagens. Quero escrever algo, sinto a inquietude da Criação a crescer-me no corpo da alma, sento-me para escrever(mas já escrevi deitada, por pressa absoluta), salta-me um fulano da cachola, um beltrano se insinua, uma sicrana entrasem pedir licença... Às vezes nascem de quase nada. Certa feita, parei num pesqueiro e enquano meu marido pescava, fui à lanchonete da fazendinha adaptada ao esporte e vi um armário de vidro cheio de bonés. E não é que o dono de um deles me obrigou a escolher uma das mesinhas e escrever até a mão doer?Fui continuar em casa, um conto que-data venia, não é imodéstia!-quanto mais leio, mais gosto...

O pensador Hermínio Miranda escreveu em um de seus livros (A Memória e o Tempo, da editora Lachâtre), algo que, a meus olhos de psicóloga, tem tudo a ver:

"A mente se vale de mil artifícios e sutilezas´para bloquear a conscientização dos conflitos geradores das disfunções emocionais e, enquanto possível, mascarar os problemas e vestí-los com fantasias, disfarces e símbolos e ou códigos".

Ouseja, nós, autores, padecemos de... nós mesmos. Nossas vivências, as histórias que ouvimos, assistimos, os enredos dos demais, tudo se mistura e refaz em nossa mente e nos persegue, pedindo libertação. Estamos enredados em séculos de informações...Como herdamos o nariz de um tetravô, um olhar de uma bisavó, herdamos o Mundo velho e todos os seus personagens. Que nos cobram vida. Felizmente, nos permitem de tudo, desde sermos fiéis a modificá-los aqui e ali, ou totalmente. Pelo menos a princípio. Depois eles nos tomam. E quando o escrito é concluído, sentimos falta deles, partes de nós, partes dos outros, partes da Humanidade...

Criar do nada, de uma idéia, é alquimia pura, o bruchedo, o rojedo a se mesclarem e tinturarem nossas idéias... O branquedo se incorpora à massa , tudo é atividade lúdica, brinquedo de montar... Mas por que há quem sofra tanto para escrever? Talvez pelo próprio perfeccionismo, pela necessidade de ser bom, ser melhor, ser único:são nossas exigências de seres humanos, creio, responsáveis pela diluição do prazer de escrever sobre esses personagens de sonho e suas acontecências reais. Ou vice-versa. Ou apenas frutos da imaginação, floresta densa, mágica, cheia de deuses, animais, mitos, tabus e possibilidades infinitas...

Na moderna Literatura eletrônica é comum se dar um tema - assim como em certos concursos - e as pessoas saírem escrevendo. É fascinante verificar como um mesmo tempo gerencia tantos diferentes pensares e realizares criativos.

Eu, por mim, posso declarar que amo meus personagens-mesmo os infantis, animaizinhos e objetos que falam, plantas e fantasmas, não importa-como se realmente fossem meus filhos. E decerto o são, dei-os à luz, nascidos do ventre imenso de minha alma que ganhei já recheada de sementes, quais os óvulos de qualquer mulher em seus ovários...

Tudo que aprendemos e apreendemos, salta de nosso self, vem incorporar-se aos personagens. Então, podemos até afirmar que um deles pode ter sido amoldado a partir de vários pedaços, estilhaços, embora uns tantos sejam esculpidos de um único e soberano tronco...

Diz-se que Balzac se desesperava com o rumo que alguns personagens se dava, escapando ao seu desejo de autor. Isso já me aconteceu, mqs fico agradavelmente surpreendida com sua força pessoal. Não são marionetes, títeres que eu mova ao bel prazer... O elemento surpresa vindo deles próprios é divertido ou extraordinário...

Ah, mas que forte me sinto quando, usando os dons que vieram do Alto, uso minha astúcia e no final, afinal, provoco um epílogo surpreendente. Até para mim, às vezes... mas quem foi então que conduziu-me a mão apressadaacavalgar atrás do pensamento, enredado em algo que desconheço?

Confesso que já tive um insight e fiz o protagonismop acontecer a meu bel prazer. Muitos escritores contarão o mesmo. A incumbência de escrever nos transcende e preenche o espírito. É por isso que confesso-me perplexa quando sei de plágios. Que imbecis os que copiam outros escritores!Costumo dizer que, analogamente à pessoa que, indo a um Banco, faz um empréstimo e deve devolver a quantia, quem faz uso da palavra alheia tem de colocar aspas. O dinheiro emprestado não é seu. Nem a palavra.

Neste exato momento há uma sambista que dança em minha mente, chamando minha atenção para mais uma história de carnaval... Tem vinte anos, é cor de chocolate acaba e perder um amor! Vou atrás dela, mesmo que tenha de ir com samba no pé...

Clevane Pessoa

Publicado originariamente no Jornal Ecos, em 06/02/2005
Enviado por Darlan Alberto Tupinamba Araujo Padilha

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