A ESTÁTUA POR TRÁS DOS ÓCULOS

O quarto roubo dos óculos da estátua de Carlos Drummond de Andrade, na praia de Copacabana, em maio, no dia 22 (*), mostra que há uma deliberada intenção de evitar que o “poeta por trás dos óculos” “veja” o que acontece à sua volta.

O Rio que Drummond adotou como sua cidade já não existe faz tempo. E a impressão que passa é que o Rio de Janeiro em que o poeta cumprimentava as pessoas nos seus passeios pela orla de Copacabana, sem medo de balas perdidas, caminha placidamente da civilização à barbárie.

É claro, não sejamos ingênuos de achar que a cidade era um paraíso. Havia violência, corrupção, drogas, crescimento desordenado das favelas, injustiça social etc, basta olhar as colunas do tipo ´Há quarenta anos´, mas talvez a maior diferença entre estas épocas, pelo menos é o que falam os mais velhos, é que hoje há muito mais falta de educação nas ruas do que antes.

Na orla que Drummond costumava freqüentar, por exemplo, além de ninguém precisar se desviar de balas perdidas ou de algum carro que fosse parar na areia, havia uma cordialidade que hoje parece patética se alguém tentar reproduzi-la. Experimente dar ´bom dia´ para um desconhecido na rua e veja o que acontece.

O poeta, que era um profundo observador do cotidiano, seja do seu banco, na orla de Copacabana, ou nas andanças pelo centro da cidade, onde trabalhava como funcionário público, não gostaria de ver a selvageria do trânsito, a ação dos flanelinhas, a barulheira dos carros de som que saem de todos os lugares, os assaltos constantes a turistas em plena luz do dia, a ostentação artificial daqueles que viram ´celebridades da noite para o dia´...e por aí vai.

Talvez Drummond, que também era contista e cronista, conseguisse extrair humor de algumas destas situações, como muitas vezes ele fazia, mesmo ao falar de pequenas tragédias. Assim como ele perguntou em “Rio em flor de janeiro”, “que mudou nesta cidade da noite para o dia?”, referindo-se às flores da cidade, talvez fosse preciso refazer a pergunta e se esquecer de tentar encontrar a resposta, tão difícil e complexa que parece ser.

O Rio, que corre “pela nossa vida, como sangue, como seiva” (“Canto do Rio em sol”), agora é incapaz de lhe emprestar uns óculos para que ele conseguisse tentar decifrar o que se passa. Sem os óculos, a estátua de Drummond está em harmonia com a realidade que a cerca, uma realidade míope e tosca de uma cidade em que a civilidade já foi um hábito. Mas de repente, quem sabe, os ladrões que roubaram os óculos da estátua podem estar fazendo um favor involuntário ao poeta, que assim pode continuar no seu posto preferido de observador mas sem poder observar as tantas "pedras no meio do caminho" da cidade que tanto amava.

Só espero que aquele Rio de Janeiro onde Drummond viveu não tenha se transformado apenas em quadro na parede, como a Itabira do poeta mineiro.

André Luis Mansur
29/5/2008

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