MENOS

Engarrafado nas ruas de São Paulo, aceito o desespero. Posso chegar fora da hora e perder o compromisso. Não telefono para quem me espera; a ligação somente multiplica a ansiedade e me estimula a dividir a culpa do atraso com os problemas viários.

Tenho uma distração refinada. Gosto de observar os carros amassados. Ligo a música instrumental de meu pensamento. Assisto a uma orquestra de rangidos, discernindo o motor dos barulhos intrusos.

É impressionante como há carros amassados em São Paulo. Um cemitério ainda vivo de automóveis. Fantasmas da Volks, da Fiat, da Renault conversando sobre os velhos tempos da concessionária em cada sinaleira.

Em Porto Alegre, são raros. Em São Leopoldo, muito menos. Batemos o veículo e logo estamos no dia seguinte na oficina, exigindo uma solução rápida do caso. Com ou sem dinheiro. Com ou sem seguro. Questão de honra - é como sair com pasta de dente no rosto, feijão nos dentes ou um chupão no pescoço. O carro está incluído nos itens indispensáveis da boa apresentação no trabalho.

Lá parece que não há tempo para arrumar o carro. Ou não vale a pena. Antevejo a origem do dano. O motorista foi manobrar e beijou a boca-de-lobo, ou alguém tirou lasca numa ultrapassagem arriscada. Estudo as imperfeições com rigor de um restaurador de obras de arte. De tão prejudicados, encontro veículos na forma de sanfona, flauta, pistão, mas que continuam trafegando sem temor. Funcionam, é o que importa.

Na capital paulista, se o amasso não emperra uma porta ou não trava o funcionamento do conjunto não é motivo de crise. Um risco na lataria não tira o sono de ninguém. Há uma conformação tranqüila. Não existe a tragédia das pequenas causas, leva-se adiante como se fossem naturais o choque, o impacto, o erro nesta vida atribulada.

Descobri que aquilo que me incomoda tremendamente não sustenta a raiva. É ficção para me dar importância. Talvez consertasse para manter a posição social.

Em casa, deixo agora um quadro trincado no escritório, uma mesinha com marca de cigarro, uma almofada no sofá sem botão, uma escultura decepada, uma parede com os pés dos filhos.

Não vou esconder, colocar fora e arrumar a cena para a visita. São marcas de que estou mentindo menos.

Fabrício Carpinejar

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