SIZÍGIA
Sempre que me envolvo em alguma discussão sobre vanguarda – e sobre as frágeis fronteiras entre as artes – penso na palavra sizígia. Para muitos, sizígia deve ter o efeito de rosebud , a palavra enigmática que explica e traz novas dimensões ao filme Cidadão Kane (1941). Sizígia significa, em astronomia, a situação na qual três corpos celestes permanecem, em algum momento, perfeitamente alinhados. Assim sendo, quando a lua, o sol e o nosso planeta se encontram na mesma linha reta – surge a sizígia (cuja raiz grega significa, justamente, conjunção ou união). Uma parte considerável das vanguardas parece buscar esse instante aleatório de harmonia durante o qual, em vez de destruição ou aniquilamento, passa a existir unidade que cria um objeto ou um fenômeno inteiramente novo. Seja na pintura, na literatura ou na música, o artista tenta muitas vezes introduzir elementos inesperados e intangíveis: o cubismo seccionou as imagens em novos planos visíveis; o enredo de um romance passou a ser a aventura lingüística, não os episódios fictícios; o tempo da melodia também se traduziu por emissão de luzes.
A primeira vez que li a palavra sizígia foi em Wordplay (1992), do artista gráfico John Langdon. No livro, a palavra grafada em inglês – syzygy – ganhou contornos ainda mais espetaculares do que em português – uma vez que exibe três letras iguais alinhadas por três letras diferentes, ou vice-versa, como se trouxesse a definição do conceito na sua existência material. A palavra também serviu para que John Langdon exercitasse, uma vez mais, a arte em que se mostra magistral: a do ambigrama.
O ambigrama é uma palavra estruturada a partir das suas relações de simetria, podendo ser lida, sem mudanças, de pelo menos uma posição oposta. Um aviso como o que se encontra, em inglês, numa academia de ginástica (“NOW NO SWIMS ON MON”, “Agora não se nada na segunda-feira”) pode ser perfeitamente lido de cabeça para baixo, uma vez que é simétrico a partir de um eixo horizontal. Em Wordplay, John Langdon se confessa inspirado pela representação de opostos e por sua harmonização, segundo conceitos que remontam ao taoísmo e à filosofia zen. O logotipo fundamental para a sua visão de simetria e do ambigrama é a representação do Yin e Yang, a circunferência que contém seus espaços igualmente preenchidos pelo branco e pelo preto e, dentro de cada uma dessas cores, dois pequenos círculos com as cores opostas. Com base nesses princípios, o artista gráfico começa a pesquisar modelos matemáticos e chega às obras de M. C. Escher, quando finalmente reconhece: ao pesquisar os pólos opostos, “sem qualquer surpresa, eu tentei fazer com as palavras o que Escher tinha feito com prédios, pássaros e peixes.”
Considere-se um ambigrama como seagulls (“gaivotas”) e toda a sua expressiva idealização do reflexo sobre a superfície do mar, além das linhas leves e arredondadas que se equiparam a asas. Considere-se também bridges (“pontes”) com sua tipografia a lembrar o material bruto da construção, que ainda sustenta, pequena, a letra i.
A palavra bridge é em si mesma simbólica da conexão que se pode fazer entre um lado e o outro lado. Ambos os ambigramas podem ser encontrados, entre muitos outros, na página que seu autor atualmente mantém em www.johnlangdon.net, sempre lembrando que ele conseguiu construir um ambigrama com seu próprio nome. Na época em que li Wordplay, porém, dois belos ambigramas chamaram a minha atenção: Sometimes/Never e Perfection, que se utilizam da forma circular e da repetição ao infinito.
Em nenhum momento do livro – e tampouco em Inversions (1989), de Scott Kim, e Ambigrammi (1987), de Douglas Hofstadter – se menciona o poema visual ou o poema concreto. O princípio motriz das pesquisas de todos esses desenhistas gráficos, matemáticos e filósofos é a existência da sizígia entre, por exemplo, o taoísmo, a física e a palavra
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Por vias completamente desconhecidas da série literária, e sempre de modo inesperado, as criações surgidas dessas pesquisas passam a ter evidente relevância para o debate sobre vanguarda e sobre os rumos do poema, este com o peso quase secular da “crise do verso”.
Por ora, parece importante lamentar a persistência daquilo que o cientista e romancista C. P. Snow chamou, em 1959, de “as duas culturas”: a separação entre os saberes científicos e os saberes humanistas. Talvez a vanguarda histórica – e, a partir de então, todas as vanguardas – possa demonstrar esse impulso de religação de tudo o que, na vida e na arte, deveria constituir um só elemento. Paradoxalmente, até mesmo a poesia concreta mereceria ser questionada em sua ambição verbivocovisual, pois estaria confundida a muitas outras manifestações semióticas: Marjorie Perloff, em Radical Artifice (1991), livro no qual comenta a poesia na era da mídia, não pressente diferenças entre o poema “Código”, de Augusto de Campos, e algumas placas de carro norte-americanas que estampam outros jogos de palavra. Controvertidas como sejam as vanguardas (bem como suas intenções e seus resultados), não se deve esperar a predominância de uma linguagem que descarte as demais: utopicamente, só mesmo um alinhamento em sizígia evitaria a cizânia.
Felipe Fortuna