As Time Goes By

O rádio relógio às 5h30 toca As Time Goes By com Dooley Wilson (o Sam de Casablanca). Nada poderia anunciar melhor um bom dia. Vanessa levanta correndo e, como faz todos os dias da semana, hábito adquirido há anos, vai para a academia. Lá a rotina que lhe dá belas formas e bom humor: esteira, musculação, esteira e alongamento. Durante a esteira da rara academia que não tem TV, nem música de academia, apenas uma leve música de fundo, e portanto encontra-se paz para pensar, ela revê mentalmente a agenda do dia, que será importante: ela deve apresentar à diretoria da empresa o projeto “Bodas de Prata”, o plano diretor da empresa para seus vinte e cinco anos de vida, daqui dois anos.
Já arrumada, pronta para seguir para o trabalho o primeiro contratempo: o portão do prédio não abre. Respira fundo e vai atrás do zelador, que em quinze minutos resolve o problema.
Sai um pouco atrasada, mas nada que prejudique seu compromisso. Um pouco mais adiante, já a caminho, descobre que por reformas o trânsito está interditado adiante e, devido às falhas de sinalização, atrás de si a fila já é grande, o que impossibilita a volta. Pensa: Calma! Hoje é um dia importante. Tentando ainda manter a calma coloca um CD da Billie Holiday, respira fundo e relaxa – nada a pode tirar do sério hoje. Cerca de trinta minutos depois segue, agora atrasada, para empresa. Ainda não sabe que vai passar por uma fila enorme, devido a um acidente no percurso, com espera de mais de uma hora, mas que, no final das contas, atrasará todos participantes reunião, por sorte.
A sua apresentação foi um espetáculo. Ela foi nomeada a gestora do projeto, que lhe garantirá as decisões dos principais projetos da empresa, além de pelo menos mais dois anos de emprego, com um aumento significativo de salário.
À tarde ela me liga, contando as novidades e convidando-me para jantar, por conta dela. “Afinal, foi com você que discuti minhas idéias” – disse ela justificando o convite.
Lá pelas 18h30, do seu atribulado, mas gratificante, dia, ela chega ao supermercado, lotado, como anunciam as vagas do estacionamento. Depois de duas voltas, segue um senhor que se dirige ao carro, espera alguns minutos até que ele descarregue suas compras e saia. Ainda teve que dar uma rezinha para que ele saísse. Quando engata a primeira, uma mulher, que finge que não viu sua espera, com uma Grand Cherokee, ocupa sua vaga. Pensa em discutir, mas.. .Espera um pouco mais, arruma outra e vai às compras. Fila para tudo, mas achava injusto perder a paciência: o dia começou com As Time Goes By !
Compras feitas, resta ainda esperar a fila do caixa. Escolhe uma que tem três carrinhos e uma menina de uns 13 anos com um par de havaianas à mão.
Por sorte, parece uma boa escolha, pois sua fila anda! Na fila ao lado, uma mulher com um carrinho lotado, que obviamente é a mesma da vaga do estacionamento, fala com a menina:
– Filha, acho que sua fila vai mais rápido.
Vanessa pensou: Paciência. Mas paciência tem limite e calmamente falou:
– A senhora se incomodaria de escolher uma fila? A senhora vem para cá e eu vou para a sua – sugeriu.
– Eu vou para aí... Mas minha filha vai ficar nesta. – E trocou de fila com a filha.
Vanessa, que apenas olhava estupefata, resolvera manter a calma, mas, para seu azar, sua fila começou a andar mais rápido e a mulher resolveu mudar
novamente de fila.
Em um último esforço, respirando fundo, voltou para onde estava, mas a duas filas empacaram. Disputavam, silenciosamente quem chegaria primeiro e Vanessa, que já estava no limite, não sabia se suportaria a perua da Grand Cherokee entrar em sua frente de novo. Foi quando, as duas paradas à boca do caixa, cabeça a cabeça, com apenas um carrinho à frente de cada uma, abre, ao lado, outro caixa e a atendente se dirige à Vanessa pedindo para ela passar. Vanessa, maquiavélica, diz à perua da Grand Cherokke:
– Senhora. Aquele caixa vai abrir e, pelo visto, a senhora deve estar com mais pressa que eu... – em um tom suave e delicado, quase carinhoso.
Foi o que faltava para a mulher lhe dirigir palavras que aqui não posso publicar, enquanto sua filha, de canto de boca, dizia:
– Mãe. Menos!
– Senhora. Olhe sua filha. Olhe o exemplo – arrematou maldosamente Vanessa, dirigindo-se ao caixa e rapidinho indo embora, não sem antes fazer um ligeiro aceno de despedida à “senhora”.
Horas depois, enquanto jantávamos, ela me contou o fato que ora escrevo, com uma tristeza no olhar que não há como descrevê-la com palavras. Vocês precisavam estar lá para ver, mas creio que nem todos perceberiam seu arrependimento, já que a história era engraçada.
– Um dia que começou com As Time Goes By ! – disse ela lamentando a pequena mácula.
Quando ao fundo, por coincidência, e que seriam das histórias sem as coincidências, começa tocar uma bela versão de As Time Goes By, com Z Z Top.
E, saudosistas, brindamos:
– Ao Sam!
– Ao Rick Blaine!

Antonio Fais

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