AO PERDEDOR, OS SAPATOS

             Ainda não arredei, ainda não tirei o pé, ainda não me   descalcei daquele incidente ocorrido lá em Bagdá, quando um jornalista iraquiano arrancou um de seus sapatos e atirou-o contra Bush,   errou, quer dizer, Bush abaixou-se, o jornalista  tirou seu outro sapato, arremessou-o também, Bush abaixou-se de novo e o sapato passou tinindo junto ao sacripanta americano.
             Esse par de sapatos continua andando no meu imaginário e dando voltas na cabeça  de todo mundo. Talvez acabem fazendo um grande monumento a eles, lá na entrada de Bagdá, quando derem de vez um  chute nos traseiros das tropas americanas invasoras.
             Alguns jornais fizeram uma ligeira alusão ao significado dos sapatos  entre os árabes, mas não conseguiram dizer muita coisa. Calcei minha curiosidade e fui atrás de mais informações. Não é à toa que existem por aí   narrativas folclóricas em torno de sapatos. Agora, por exemplo, é tempo de Natal, e o costume de botar sapatos junto à lareira ou deixar os sapatinhos de crianças junto à cama, nos diz que Papai Noel virá para deixar aí os presentes que esperamos. Neste caso, o sapato é o símbolo da recepção, da gratificação, do preenchimento de nossos desejos.
             A estória da Gata Borralheira (nunca gostei do nome que em português deram a essa narrativa milenar), mas essa estória  que tem uma variante até no Egito antigo e em Roma, é também uma ilustração da falta e do preenchimento. Na versão  que a gente lê quando  criança, o  príncipe ficou com um pé dos sapatos que a moça largou na fuga do baile, mas ele precisava ter os dois pés, ou melhor, os dois pés e a moça inteira. E ele a conseguiu, dos pés à cabeça.
             Pois no Islam, essas coisas sobre sapatos são bem mais sérias do que parecem. E por isto os americanos estão lá metendo os pés pelas mãos. Por que será que quando entramos numa mesquita temos que tirar os sapatos, deixá-los num canto e caminhar de pés nus no recinto sagrado?
             Isto é sinal não  apenas de reverência, despir os pés, cobrir a cabeça. É sinal que a pessoa reconheceu que há uma fronteira, um limite a partir do qual   tem-se que demonstrar   humildade, que estamos  descalçados de qualquer pretensão, que se está entregue ao outro, ao divino. Isto, de alguma maneira,   ocorre também em algumas culturas, como a japonesa, onde você deixar os sapato na soleira das portas em respeito ao dono da casa.
             Na Bíblia, o livro de Ruth (4,7-8) se refere à utilização do  sapato como elemento de troca, de amizade, de negociação. "Este era outrora o costume em Israel para confirmar todo o negócio relativamente à redenção e à permutação: tirava o homem o sapato e o dava ao seu vizinho. Esta era a maneira de dar documentos em Israel".
             Pois o nosso iraquiano que atirou os sapatos na cara do Bush estava certíssimo. Ritualizou algo milenar. Estava dizendo "tire os pés daqui, leve suas botas embora". Ou, em outros termos, " vou fazer o gesto mais radical e puro que é descalçar-me de tudo para recuperar a posse de meu  corpo e de minha terra".
             Bush fez que não entendeu, ou por ignorância ou por esperteza. E já que aqui no Brasil estamos  falando tanto do centenário  de Machado de Assis, que fez um de seus personagens dizer "ao vencedor as batatas", bem se poderia aplicar isto a Bush no final de seu desastroso  governo, corrigindo a expressão: "Ao perdedor, os sapatos".

Affonso Romano de Sant\'Anna

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