Cuba Libre & Saias
Num atlas talvez desenhado por um cartógrafo bêbado, Cuba encontrava-se geograficamente situada entre o quarto, o corredor, o salão e o quinto andar de um prédio art déco da rua Paissandu. Longitude 186, latitude 5. Coordenadas invariáveis de uma república cujos únicos furacões e abalos sísmicos se resumiam ao farfalhar das saias a ventar rebolados e às imperceptíveis fendas que os saltos agulha, 8.5, abriam no assoalho impecavelmente encerado.
Por vezes, muitas vezes, maremotos agitavam cubos de gelo em mares de uísque e ojos verdes se faziam heridos de sombras. Nessas horas as batidas dos corações se confundiam com as dos bongôs e as narinas ventavam quentes arrullos de palma. Nessas horas, invariavelmente Conceição, a copeira que se achava musa de Cauby, me descobria escondida no corredor de uma alfândega que barrava meninas de dez anos de idade. Cuba era então para mim interdita e até os quatorze anos me foi negado visto de entrada em seu território.
Talvez pelas conversas que meu pai trocava com os amigos a respeito de uma mestra maestra que executava, no topo de uma serra, sonatas e rapsódias com uma porção de alunos tão pobres que tocavam violinos com arcos de facões enferrujados e por falta de instrumentos de percussão disparavam balas por toscos rifles, ou pelos suspiros que as mulheres trocavam no banheiro
– entre novas camadas de batom, pó de arroz e lufadas de channel nº 5
– ao se referirem a um magnético guerrilheiro, meu interesse pelo país foi crescendo tanto que um dia ludibriei os fiscais alfandegários e entrei de clandestina na ilha, escondida atrás de uma poltrona.
Cuba, acolhedora das boas revoluções, acolheu-me. Revelou-se em pleno farfalhar acetinado de saias, no aroma de lavanda e pinho a exalar das barbas, nas risadas intervaladas pelo escorrer do álcool garganta abaixo, na fumaça dos charutos encontrando-se no ar com a dos cigarros equilibrados em longas piteiras. Fumar era naquela época tão livre como Cuba.
Minha permanência no país durou até o momento em que fui rastreada pela burocracia (infelizmente, até no estado revolucionário ela existe) e deportada para o meu quarto, tendo que atravessar o país de pijamas. A humilhação
– como acontece com os verdadeiros revolucionários
– não abalou minha fé na revolução e por muitos anos freqüentei Cuba na clandestinidade. Se fui descoberta? É claro que sim. Porém, retornei muitas vezes. Não seriam as deportações que me roubariam o gozo de ouvir Ibrahim Ferrer e o tilintar do gelo dentro de copos de Cuba Libre.
Marcia Frazão