Nada, além do homem e de mim

Sou como as árvores, que neste inverno europeu, não têm folhas. Sou eu aqui sem folhas, sem o que me dá energia. O meu sol são as pessoas que amo. Flores nem pensar. Não as têm as árvores. E também eu não as tenho. Oh temporada invernal que se faz em minh'alma, tão longe de tudo que associo à virtude. Poderia largar tudo e chutar o vento, posto que isto nada vale para mim. O que é a profissão de cada um quando a vida é curta e o relógio não pára de tiquetaquear? Até quando estarei vivo? Hédon diz ao meu ouvido para tudo largar e minha terra re-encontrar. Mas não sou verso nem prosa, sou prosa ao inverso, poema sem cadência e decadência sem pois.

Minha gula literária se dá de forma diferente da musical. Em livros, gosto da diversidade erudita, gosto dos que bem argumentam sobre assuntos diversos e interessantes. A internet é minha livraria e ainda que seja capaz de passar horas em bibliotecas ou mesmo em livrarias, nada se compara à diversidade e facilidade de acesso das lojas virtuais. O capitalismo também vem a calhar, por vezes. Nada como o prazer de chegar à caixa de correio e devorar aqueles que chegam; lê-los todos, os prefácios, como crianças a bolachas das mais saborosas. Depois, a leitura torna-se tranqüila e proveitosa, caso de amor verdadeiro, nada de paixonite como que à primeira vista. Um ano passei com aversão à leitura em minha língua materna posto que desejava – e ainda desejo – melhorar minha leitura noutros idiomas. Mas há fatos inegáveis: nada como entender o mundo num contexto que é o nosso. É impressionante como a língua molda nossa interação subjetiva com o mundo! E pronto que minha compreensão melhor e mais profundamente se faz no idioma de Amado. Não obstante, o caos da compreensão incompleta no inglês ou francês leva-me a uma reflexão mais profunda dos textos que tenho diante dos olhos e, se por vezes o tempo se esvai, doutro modo a fixação é mais completa. Pena tenho daqueles que jamais terão a oportunidade de apreender a literatura noutro idioma que não os seus. E mais pena tenho ainda daqueles tantos, covardes, que mesmo com a oportunidade e o conhecimento em riste, não se arriscarão a ler que senão em suas línguas maternas. Assim como os filmes são melhores com as vozes originais, também se pode dizer isso dos livros, das palavras. A tradução é sempre um processo onde há perda; quando senão alteração completa e irrestrita de conteúdo. O mesmo livro é outro livro, noutra língua. Sou portanto a favor da leitura no original sempre que possível. Em música, meu apetite é mais seleto e de certa forma chauvinista. A diversidade não tanto me aguça e prefiro repetir incessamente aqueles pratos que já considero saborosos, vez por vez e por vez. Devoro-os com apetite e, em seguida, torno a comê-los novamente. Gosto também de prepará-los no fogão musical que é minha guitarra e que é meu violão. Enquanto não lhes souber preparar com toda a excelência, continuarei a ingerí-los de forma a aguçar meu paladar e assim ter mais subsídios no instante de bem temperá-los e a seguir cozinhá-los, fritá-los ou assá-los. Não há assim também infinitos truques na cozinha musical. A variação a partir de formas básicas e simples descreve todo o conhecimento do homem. O universo e o ser humano são limitados. Aquele mais que este. E com relação à este quem vos fala: tenho mais limites que livros de cálculo numérico.

E dedico este último parágrafo à garota que, tendo lido alguns de meus textos, veio dizer-me ontem ao bar que eu não posso ficar pensando tanto sobre mim mesmo e sobre o mundo. Ora, se não posso.

Meu problema é não ser um, é ser tudo e ser todos, é não me enquadrar em nenhuma categoria fechada em que me queiram colocar ali trancafiado e estereotipado; inopinativo, sonso e quieto. Coloquem-me ao menos na categoria dos rebeldes inclassificáveis quiçá, categoria ampla e diversa. E assim, dado que sou resistente a tais amarras categóricas simples, e por ter esta identidade indefinida e indefinitiva, jamais as pessoas poderão m'entender por completo, dado que a classificação é a mais sólida base utilizada pelo homem para a compreensão. Assim, caso desejemos traçar um contexto finalista para tal comportamento, explicando-o historicamente de forma a encontrar razões e colocá-las dispostas numa linha, uma após a outra, ante a flecha do tempo, talvez esta minha inclassificação consista numa conseqüência direta ou indireta de meu apetite diverso livresco anteriormente comentado; embora esteja claro que reduzir todo este meu mundo esquizofrênico a apenas uma única característica seja como chamar elefante de camundongo e pensar-se correto.

Fato é que não há maneiras nem soluções onde encontrar respostas para o enigma da vida. Inclusive a beleza aestetica destas questões existencialistas está justamente nesta incompreensão que jamais passará, ainda que os humanos sejam criaturas estranhas que desde sempre têm se esforçado para responder aquilo que não é ou será entendível. Mas não quero terminar este relato com nenhuma brilhante ou óbvia conclusão posto que muito já sabemos e muito mais ainda não sabemos nem jamais saberemos, como Shakespeare em Hamlet, Horácio se bem me recordo. O conhecimento, como a moral, não existe fora do homem. Popper estava errado e não há epistemologia sem um sujeito conhecedor. Parece-me ridículo pensar que existe sabe-se-lá-onde algum enorme livro onde todos os conhecimentos do universo estão escritos e ao qual só se dá ao homem a possibilidade de lê-lo de partes em partes e que um dia almejar-se-á tudo conhecer. Ora, não há livro algum, o universo é caótico e temos mesmo sorte de existir alguma ordem em meio a atratores estranhos dos quais podemos compreender e que, assim, fazem-nos capazes de prever seu comportamento futuro ante a flecha já comentada. Mas todas as teorias científicas são teorias do homem, e todos os conceitos que utilizamos em nossa linguagem para descrever o mundo são conceitos humanos. A abelha tem uma idéia diferente e incompatível com a nossa sobre o que é uma montanha. O que dizer das baleias? O mundo é o mundo que enxergamos e que somos capazes de racionalizar com este cérebro primoroso e limitado que temos. Mas não há nenhum grande livro do conhecimento e esta visão, se devidamente compreendida, acabaria com o extremismo religioso e com o dogmatismo científico, males da sociedade moderna. Fora do homem nossos conceitos se perdem, simplemsente deixam de existir. Não saberemos de nada que não seja apenas nosso e apenas para nós. Ridículo e maravilhoso é o ser humano.

Francisco Prosdocimi

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