Inerte no sofá
Se você chegar de surpresa na minha casa sem avisar, vai me encontrar provavelmente sentada ao sofá, com a TV ligada e o notebook no colo. E certamente vai comentar com alguém, como noventa por cento das pessoas o fazem: “Mas Fulana, Clotilde passa o dia na frente da TV e do computador! Não sei como ela não se entedia…” Foi esse o comentário que uma amiga discretamente fez para outra e que essa outra, também discretamente, me repassou.
Passo, sim, o dia quase todo nessa postura. Mas não é ali que estou. Zapeando com o controle remoto pelos canais, caio em um deles onde se fala na obra do Padre Vieira e um ator diz um trecho do Sermão da Sexagésima; lá vou eu no Google, e procuro o sermão, que leio inteiro… Quanto prazer isso me dá! Como fico feliz de ler palavras escritas há quase quatrocentos anos e que encontram acima do abismo dos séculos um eco tão profundo no meu coração! Para desfrutar de Vieira é preciso ler o texto como quem prega: em voz alta, e pausadamente, pois foi para isso que essas palavras foram escritas, para ecoarem nas abóbadas das catedrais barrocas de Lisboa e da Bahia, penetrando cada recanto, adornando cada voluta, fazendo brilhar os ornamentos dourados.
Transcrevo aqui um texto e depois lhe peço uma reflexão sobre ele:
Diz Vieira:
Porque convertia o Baptista tantos pecadores? - Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam. “Homens, fazei penitência” - e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo Clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão de converter? Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, como se há de fazer fruto?
Depois de lido o trecho, a reflexão é óbvia: ao escolher o seu candidato nas próximas eleições, veja o exemplo pessoal de cada um, as suas obras, o que ele fez, como leva a sua vida, e não o que ele diz na televisão.
Isso me leva a perguntar: por que será que neste ano está todo mundo falando do Padre Vieira? É ainda o notebook, ou melhor, o Google, que me responde: neste ano de 2008 acontecem as comemorações dos 400 anos do seu nascimento, uma vez que o famoso escritor e orador sacro nasceu no ano de 1608, em Lisboa, e faleceu na Bahia, em 1697.
Enquanto leio sobre Vieira, recebo sinal de que chegou e-mail. É a minha amiga, a poeta Vitória Lima, que como eu faz parte de uma lista de discussão fechada que reúne algumas amigas, todas aqui da capital paraibana, enviando para uma delas o poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa . Aí, viajo do padre jesuíta para o poeta, leio o poema e me lembro de Maiacóvski, nem sei mesmo porque… Maiacóvski, que era “todo coração”, viveu apaixonado pela Lilia Brick, mulher do seu amigo, o que o punha numa situação de confortável impossibilidade para ir além no relacionamento. Conhecemos tanta gente assim, não é mesmo? Gente que se apaixona por pessoas impossíveis para não precisar se envolver mais de perto, mais corporalmente. Lembro-me de outras figuras famosas com seus relacionamentos impossíveis e complexos, como o grande Cole Porter, por exemplo, sobre a vida do qual há um espetacular filme dirigido por Irwin Winkler e estrelado por Kevin Kline.
E de novo estou perto, mais do que perto de mim mesma, imaginando e refletindo sobre os meus próprios relacionamentos, onde muitas vezes me meti em situações impossíveis de serem concretizadas, consolidadas, continuadas. O notebook está no colo: abro o arquivo onde escrevo minha possível autobiografia e acrescento mais esse capítulo aos muitos que já se acumulam e que não têm prazo para serem publicados, porque é preciso esperar que a maioria das pessoas mencionadas morra ou fique velha demais para se incomodar com o que estou escrevendo – isto se a mesma coisa não me acontecer antes.
Pego o controle remoto e dou outra zapeada na TV e num canal infantil vejo o Barney, que é uma espécie de lagarto, ou dinossauro, cor-de-rosa e verde, que as crianças adoram. A minha sobrinha-neta Maria Eduarda é louquinha pelo Barney e no seu aniversário de dois anos a mãe fez a decoração da festa com esse motivo. Para completar, o tio da criança, meu sobrinho Pedrinho, que tem um metro e oitenta de altura, foi instruído a vestir uma fantasia do tal Barney para brincar com as crianças.
Não preciso dizer que foi um transtorno. As crianças, acostumadas com o Barney de 60 cm de altura – tamanho com que aparece na tela da Tv e diante do qual elas dançam e cantam acompanhando o programa - ficaram simplesmente apavoradas quando viram o monstro verde quase tocando o teto e se esgüelaram em uma gritaria apavorada, que redundou numa choradeira incontrolável. As babás e mães levaram os garotinhos para fora do salão de festas enquanto nós, os adultos, ríamos às gargalhadas. O tio, suando debaixo do pesado disfarce, frustou-se pois não conseguiu demonstrar os passinhos da coreografia do personagem que havia aprendido com tanto afinco, cantando “Eu e você, você me ama, somos uma família feliz…”; mas consolou-se tirando fotos e mais fotos com todos os adultos presentes, que adoraram o episódio.
E tudo isso aí que escrevi é só para dizer que minha vida é mesmo muito, muito animada, apesar de você achar que estou apenas inerte na frente da TV com o notebook no colo.
Clotilde Tavares