PARANÓIA COLETIVA
Em idos tempos, quando eu ainda era insegura ao ponto de achar que podia controlar e dirigir os acontecimentos em minha vida, eu de fato defini metas e com determinação as alcancei. Tomei por isso decisões importantes, como a de me mudar da capital de São Paulo para o interior, na época em que meus dois filhos iam entrar na adolescência. Até então podia mantê-los dentro de casa, podia escolher os amigos deles, enfim, podia controlar os acontecimentos. Eu estava sobrecarregada com a responsabilidade de orientar dois seres humanos, sustentá-los, educá-los, prover todas as suas necessidades afetivas, físicas e intelectuais e estava em vias de não conseguir mais mantê-los sob controle. Eu ia ter que soltá-los, e isso me deixava aterrorizada. Eu sabia que o que acontecesse com eles durante aquele período seria decisivo em suas vidas, e muitas coisas terríveis eu já não pudera evitar que sucedessem, anteriormente. Dali para frente, o que quer que tivesse que acontecer de ruim, que não fosse por negligência minha, por falta de cuidado ou de alguma providência de minha parte. Minha consciência é demasiado cruel comigo.
Escolhi uma cidade onde havia feito amigos, pessoas reunidas em um propósito de autoaprimoramento objetivo que sempre orientou minha vida. Grupos assim suprem a ausência de convivência familiar, necessidade basal de nossa espécie. Não há como nos desenvolvermos de maneira satisfatória sem interagir em um grupo. Sem essa convivência e exercício ficamos sem alguns referenciais que nos fazem falta mais tarde. Mudamos para Sorocaba quando meus filhos tinham 14 e 12 anos e pude soltá-los tranqüila. O pior que a garotada aprontava era o que chamavam de “Luau”. Compravam bebida alcoólica no supermercado e ficavam pelas praças e áreas de lazer da cidade durante toda a noite, com violões e gaitas de boca fazendo muito barulho. Não podiam beber em lugar nenhum, nem onde iam dançar, e para ficar até o fim das festas, eram obrigados a perder o horário dos ônibus que os levariam de volta pra casa. Então iam até os supermercados 24 horas e juntavam os trocados de todos os bolsos para comprar bebidas alcoólicas, cigarros e algo comestível para compartilharem. Dali iam até a praça ou parque mais próximo, sempre com pelo menos um violão e ali esperavam o horário do primeiro ônibus da manhã. Isso era um “Luau”. Ao chegarem em casa ninguém estava acordado para testemunhar o estado lamentável em que se achavam, que nunca era grave o bastante para impedí-los de achar o rumo até suas camas, onde eu sempre os encontrava ao levantar pela manhã, graças a Deus. Nunca demostrei aprovação pelos altos níveis de alcoolização nem pelo consumo de cigarros, o que nunca era feito na minha presença, com exceção de umas cervejas que bebiam quando os amigos vinham em casa, ou das capirinhas de vodka nas festividades. Secretamente eu me sentia aliviada porque o máximo de problemas que meus filhos me causaram na adolescência não foi nada comparado aos que eu causei na idade deles. Mas isso ninguém precisava saber.
Hoje, os dois casados e independentes em todos os sentidos, vivendo de maneira honrada e decente, do jeito que toda mãe deseja para seus filhos, penso que foi ali que comecei a aprender a perder o controle das coisas. O medo nos impede de admitir que não podemos controlar os acontecimentos em nossas vidas, muito menos determinar o que vai acontecer adiante, mesmo porque nossas vidas estão entrelaçadas com as vidas de outros, as quais nem sequer temos o direito de controlar. Nossa insegurança nos leva a querer determinar como e quando as coisas tem que acontecer e deixamos o medo nos dominar, assumindo um comportamento autoritário, possessivo, tirano. Esquecemos que todas as referências de solidez e estabilidade que temos são falsas, não aprendemos ainda que estes paradigmas caíram com a virada do século. A física grita que nada é sólido, mas formado de moléculas instáveis e nervosas, que tem espaço entre elas, por onde permeiam substâncias como a água infiltrada numa parede, por exemplo. Nem aquilo que chamamos “de cabeça para cima” existe, posto que estamos todos “grudados” pelos pés na superfície de uma esfera gigante, como que pendurados de “cabeça para baixo” prestes a “cair” no espaço, caso falhe a força da gravidade. Nossa esperança é que esta esfera continue seu giro pelo espaço, para que não sejamos lançados fora dela, o que estraçalha o conceito de estabilidade. Uma bola girando no espaço é tudo o que temos, e queremos estabilidade? Nem sequer temos certeza de para onde está dirigido este giro, se é que dirige-se para algum ponto no infinito. O equilíbrio dos elementos que sustentam a vida nesta esfera é algo melindroso que está por um fio, a lotação desta bionave está esgotada e não há mais recursos suficientes para manter as espécies que nela navegam por mais muito tempo e queremos segurança?
Essa necessidade de agarrar-se ao estável, seguro e sólido é um surto paranóico coletivo, no qual ficou aprisionada a espécie humana até meados do século XXI. Já se queimou gente que ousou falar nessa coisa de esfera girando no espaço, na Idade Média. Galileu Galilei exacerbou as sucetibilidades de uma espécie que passou toda a sua existência com síndrome do pânico, sem poder nem pensar que o sólido e o estável são mitos criados por mentes doentes de tanto medo, que acostumaram-se a cristalizar os “frames” da existência e acreditar que aquele fragmento existe em separado do movimento contínuo, que é a maior característica da Vida. Neste frenesi paranóico o homem inventou o passado, presente e futuro, a linha reta, a exploração do homem pelo homem, a guerra e outras tantas barbaridades, como também o ângulo reto, o tal “cantinho”, que ele usa até hoje para encolher-se e esconder-se de si mesmo, sempre que não consegue entender porque ele não consegue controlar os acontecimentos à sua volta.
Gilda Krause