Na eletrola, a agulha sobre o vinil e o mundo a girar 1958 adentro. O som era o do Zé Comissário. Na Cataguases da época, “Comissário” era aquele sujeito pago por “comissão” como o Zé, que ia semanalmente ao Rio para levar e trazer encomendas. E que aproveitou pra abrir pequeníssimo ponto de vendas no esmirrado hall ao lado do Cinema Cataguases – discos, chocolates, chicletes ping-pong e cigarros Minister, a grande novidade das primeiras baforadas com filtro. Tudo ali naquele canto, subida pro Clube Social e descida pro Porão do João Tatu, a toca freqüentada pela maçonaria dos sinuqueiros. Exatamente onde agora funciona a Maçonaria, a outra.
Hoje Edgar Cine-Teatro, o Cinema Cataguases – instalado no novo prédio aberto em 1956, onde funcionara o velho Cine-Theatro Recreio dos tempos de Humberto Mauro – era naturalmente chamado de “Cinema Novo”, também para se distinguir do velho “Nelascope”, como eu chamava o Cinema do Seu Nelo Machado, na diagonal da Praça Rui Barbosa. E, como sempre antevendo o futuro – pois o presente, olhaí, já é passado –, Cataguases inaugurou o seu verdadeiro Cinema Novo antes do movimento dito como tal. Bem verdade que “Rio 40º”, o filme-seminal de Nelson Pereira dos Santos, é de 1955. Mas verdade mesmo é que o Cinema Novo, o “deles”, só ganhou esse nome bem depois, já nos anos 60. A gente de Cataguases já ia ao “Cinema Novo” em 1956: não há controvérsias.
E ouvia-se de lá a vitrola do Comissário. De lá do Porão do Tatu, digo eu, que ali ensaiava novas tacadas e assistia – pura fascinação, I know – aos inacreditáveis lances daquelas memoráveis partidas de bilhar entre Aristides Braga e Elton Santos, coisa de gênios. O som que descia pela escada já vinha alto de nascença e não havia razão prum antecipador “aumenta que é rock´n´roll”. Vinha de lá o "negrimoral” Chuck Berry, o papa-mocinhas Jerry "The Killer" Lee Lewis, o adamado Little Richard e a sex-coqueluche Elvis "The Pelvis" Presley. Mas nada disso sabíamos ainda. Só que aquilo era o tal de rock´n´roll, que a gente ouvira pela primeira vez do outro lado da praça, naquele “filme do Glenn Ford” no Nelascope, o Sementes da Violência/ Blackboard Jungle, e logo naquele outro, Ao Balanço das Horas/ Rock Around the Clock, com o Bill Halley e seus Cometas, que além da vibração da música-título nos apresentava Only You e See you Latter Alligator.
E tudo isso a combinar com o chiclete de bola, o cigarro com filtro, a camisa vermelha e a calça Lee dos alunos internos do Colégio Cataguases. Que quase sempre vinham do Rio de Janeiro e ganhavam, com o devido perdão, todos os “brotinhos”, mas – ó tangas, ó mangas! – eram nossos eternos patos na sinuca e nas notas mensais. Exceção feita pro Chico Buarque de Hollanda, o próprio, que costumava brilhar, o safado, nas lides das notas escolares. “Também, pudera!”, disse alguém, “o cara é filho do homem do dicionário!”. Contei isso pro Chico anos depois, quando seguíamos, velhos atletas, pruma partida de futebol do Politheama no Recreio dos Bandeirantes. Ao volante, “o filho do homem do dicionário” quase bate com o carro, tamanha foi sua risada.
Coisas que agora retornam, trazidas pelos contraventos de um email de meu amigo Acir Vidal, o comandante-em-chefe do “Contraovento”, mordaz & movimentado blog que ele posta lá de Vitória de todos os Santos Espíritos, inclusive os de porco – e que até mesmo os meus “Há Controvérsias” abriga. Sem brigas, sem nada demais. Assim diz Acir: “Ronaldo, meu querido. Em 1958/59 eu ouvi pela primeira vez o João Gilberto cantando Chega de Saudade, num disco 33 RPM, na loja do Zé Comissário, na entrada do Clube Social. Eu estava com o falecido Vatinho, Jones Walter de Mello, o Messias e não me lembro mais quem. Ouvíamos discos também lá na loja da Belinha, cujo nome da loja me esqueço, e que ficava em frente onde hoje é a Caixa Econômica Federal , perto da Estação. Seguinte: como estamos comemorando 50 Anos de Bossa Nova, bem que você poderia escrever algo a respeito. Mesmo havendo “controvérsias”. Que tal?”
Dito & feito. Ou: eis-que o porquê. Atendendo ao pedido do Acir – com entregas sempre contra o vento e “a/em” domicílio, graças à internet – comecei a me lembrar do Comissário, dos discos 33 RPM e até da loja da Belinha, na verdade a Casa Radar. Mas, eu nunca ouvi discos por lá, na Radar. Na loja do Comissário, sim. E, perdão Acir, era na verdade muito rock que rolava escada abaixo. Por onde descia do rascante refrão de “Let´s rock, evebody, let´s rock” do Jailhouse Rock do Elvis – idolatrado/imitado mais tarde pelo nosso querido Niquinha –, a todos os outros “Snookers Rock” ali ouvidos, hits como Roll Over Beethoven e Route 66, de Chuck Berry, & os cambaus. Bossa Nova pra mim foi depois. Eram naturalmente outros os ouvidos do Acir, um expert e colecionador, sempre atento a qualquer novidade “mais sofisticada” surgida nos discos; do caro e saudoso Vatinho-Jones Walter, que bem se defendia na voz-violão; e do compositor e cantor Messias dos Santos.
Os meus ouvidos, à época, ligavam-se ao barulho das bolas do bilhar, ao balanço das horas da sinuca. Esse o meu ritmo, o frenesi do “rock do Comissário”, que reverbera ainda agora e toma de assalto minhas palavras. De Chuck Berry a Chubby Checker e só depois, num vôo cool, a Chet Baker. Daquele mix de rock-blues-country de Berry em Maybellene ou Johnny B. Goode ao Let´s twist again do Ernest Evans, que vocês podem chamar de Chubby Checker, se melhor lhes aprouver. De quem, aliás, eu preferia a versão “twilstal” & coisa do I Could Have Danced All Night, som que me levou a sessões de contorcionismo explícito com (a)variado elenco de My Fair Ladies na pista do Clube Social.
Falta Little Richard, que ressurge aqui, e vivíssimo (como também Berry) ainda agora, com Long Tall Sally e o famigerado Tutti Frutti, aquele do grito de guerra de “Tarzan das Bonecas”: A wop-bop-aloo-mop-alop-bam-bom. Pois é: isso enquanto, nos brasis de Cataguases o rock tupiniquim nos chegava pelo rádio na voz da musa da fossa Nora Nei com “Na Ronda das Horas”, a tenebrosa versão de Rock Around the Clock . Logo quem, a Nora Nei do início da MPB, cujo grupo contava, vejam vocês, com o sofisticado acompanhamento do piano de Johnny Alf, além dos irmãos Farney: Cyll na bateria e Dick nos vocais. O “rádio” era naturalmente “Hoje é Dia de Rock”, o programa de Jair de Taumaturgo que a torcida do Operário e todos nós, desprovidos de “electrola”, ouvíamos pela Rádio Mayrink Veiga.
É por aí que surge o não menos Carlos Imperial, também ele interno no Colégio Cataguases, agora no comando do “Clube do Rock” na TV-Tupi do Rio. Imperial iria produzir em 1961 Louco por Você, o primeiro disco de Roberto Carlos (que ele intitulou “príncipe da Bossa Nova”). Acusado de imitar João Gilberto, o disco do “príncipe” desatinou nas paradas e foi por água abaixo. Mas, logo à frente, o príncipe voltaria à tona: coroado rei, ele mandaria tudo pro inferno ao deslanchar no leme de emoções jovemguardistas dos Lady Lauras & outros detalhes. E deixou de tratar Imperial por “papai”, como nos velhos tempos: o império agora era só dele. Coisas de rei, vocês sabem. Semana que vem, e finalmente para gáudio do Acir, a gente vem cheio de bossa. A nossa.
Ronaldo Werneck