A CASA QUE ESQUECEU DA MINHA IRMÃ
De repente, no passeio de saudades pelas ruas de Cachoeiro de Itapemirim, a sensação de uma borracha espacial passada na memória dos olhos pretéritos da minha irmã mais nova, Maria José. A dúvida cresce: - Onde a casa onde nasci? – procura ela, na bela manhã daquele dia de meados de junho de 2005, em que retornávamos à cidade, os três, eu e minhas duas irmãs (Maria Eugênia é a outra) para participar de uma cerimônia na Câmara Municipal. A máquina digital oscila pelo enquadramento criado por suas mãos, inseguras quanto à direção certa do foco. “Ela ficava bem aqui, na rua Moreira, lado impar, logo depois da Coronel Monteiro, na direção de quem caminha para o bairro Coronel Borges. Parede cinzenta, cor de cimento. Uma porta no centro, duas janelas laterais, um portãozinho do seu lado direito (de quem entra)”. Ela anda prá lá e prá cá, procura ângulos de visão que lhe façam reconhecer e ressurgir o lugar onde se situara a casa. “Não é essa que está aí.” – confessa-nos, enfim, decepcionada.
Também confuso, me entristeço, porque fiapos de minhas primeiras memórias começaram justamente aí, na segunda residência do casal, o então desenhista e arquiteto da Prefeitura Geninho Lima e a professora estadual Lulu, um imóvel alugado ao “seu” Chico Athayde, ex-prefeito, morador lá no fim do Coronel Borges. Dentro do tanque, situado nos fundos do corredor de chão cimentado que se iniciava no tal portãozinho, a visão primeira de uma pequena tartaruga se movimentando entre folhas de alface. (Os animais são imagens de encantamento que marcam a lembrança de qualquer criança). No parapeito da janela da sala, certo dia, os agrados do Tenerá, figura típica do folclore cachoeirense dos nossos tempos, me oferecendo uma mariola de goiabada, que aceitei e mastiguei prontamente, o que me valeu uma incompreensível reprimenda e forte lavagem da boca. Interessante é que a imagem de Tenerá não me assustou: seu chapelão, sua cara enorme, pálida e enrugada, poros pretos da pele, os grandes anéis nas mãos, seus cachorros, o barulho da sua voz propagandeando reclames comerciais no megafone, eram atrações, novidades, para a criança simplesmente curiosa...Mais tarde, minha mãe me contou que naquela casa levou, também, um dos maiores sustos da vida ao notar meu desaparecimento dos degraus da porta, onde costumava ficar sentado após o banho tomado. Procura daqui, procura de lá, estava eu na casa de uma vizinha, quase defronte, do outro lado da rua, que me achara “tão bonitinho”, e me levara para exibir aos familiares. Não era seu hábito fazer isto, mas, naquele momento, nervosíssima, a mãe inaugurou-me as primeiríssimas palmadas.
Mas, para minha irmã, Maria José, aquele lugar era muito mais valorizado sentimentalmente. Nesta casa se iniciou uma ligação emocional, que ela só viria a compreender duas décadas após. Somente quando adulta é que ela soube que o Dr. João de Deus Madureira Filho fora um dos melhores amigos do nosso pai, e que ele havia, junto com a Dindinha, nossa dedicada babá e segunda mãe, lhe salvo a vida, pouco tempo depois de nascer. O parto fora guiado por uma parteira, e, ao trocar as fraldas da bebê, Dindinha as encontrou empapadas de sangue, e sentiu-lhe o corpo em temperatura baixa (hipotermia). Verificou que o coto umbilical havia sido amarrado muito frouxamente e sua primeira providência foi apertá-lo fortemente com o primeiro barbante que encontrou. Em seguida, tratou de procurar um médico, nem mais nem menos que o Dr. João, um pediatra de “mão cheia”, mas, infelizmente, ele atravessava triste período da sua vida, inconformado com perda recente de uma filha criança, e não se sentia capaz de, emocionalmente, atender aos seus pequeninos clientes. Depois de muita insistência da Dindinha, que apelou para os laços de amizade que o ligavam ao nosso pai, ele cedeu, e, além dos cuidados imediatos próprios, passou uma noite e um dia aquecendo a bebê com cobertores “quentes” até percebê-la em melhor estado. (Tempos heróicos, início dos anos 40, sem as oportunas UTIs infantis e transfusões de sangue!).
E a simpatia inconscientemente gratuita que tinha por aquele então seu professor de Geografia do Liceu a levaria a convidá-lo para seu padrinho nas formaturas do ginásio e científico.
Então, no retorno ao Rio, comecei minha busca, na tentativa de ressuscitar o exato local da querida casa. Um catálogo telefônico cachoeirense, que conseguira em uma das visitas à terra, nada esclareceu porque não assinalava as esquinas que cortavam as ruas e, se assim fosse, eu me guiaria pela bem próxima Coronel Monteiro, aquela que sobe e se transforma, à direita, na Don Fernando, caminho da Matriz de Nosso Senhor dos Passos, lado norte da cidade. Papéis vários deixados por minha falecida mãe, entre eles certidões de nascimento, omitiam o local do parto. Os recibos da locação, preenchidos, assinados e selados pelo proprietário, Francisco Alves de Athayde, mencionavam simplesmente “cômodo residencial na rua Moreira”, e que o imóvel fora ocupado por nossa família até 1944. Já ia desistindo, quando, mexendo nos papéis da servidora estadual Maria Luiza Ximenes Lima, encontrei documento com as indicações dos seus beneficiários, e, nele declarado, seu domicílio: rua Moreira nº 53! Volto às páginas do catálogo telefônico (de 2002), e verifico que do nº 51 a numeração salta para o nº 57.
Não tenho outro caminho, então. Por telefone, convoco o ouvido direito da minha irmã mais nova, hoje médica, e lhe faço saber que uma cirurgia dos homens no corpo do tempo extraiu, sem piedade, mais esta nostálgica paisagem da nossa infante existência. A partir daí, em irresistível seqüela, nossos cérebros absorveram, para sempre, mais uma cicatriz urbana para descodificarem antigas memórias da tão estimada aldeia natal.
Milton Ximenes Lima