AINDA SOBRE O ACORDO ORTOGRÁFICO

              O Acordo Ortográfico que passou a vigir a partir de janeiro é a segunda reforma que vivenciei, pois a de 1943 ainda não havia nascido, e, segundo os estudiosos, alcançou grande amplitude, tendo alterado radicalmente o modo de escrever a língua e a sua significação. Em dezembro de 1971, entrou em vigor no Brasil nova reforma ortográfica abolindo os acentos diferenciais (com algumas poucas exceções) e também o acento grave em palavras como cafèzinho e sòmente. Foi bem menor que a anterior, mas causou transtornos e dificuldades de adaptação em inúmeras pessoas já habituadas ao sistema anterior.
              A principal crítica que se fez a tal reforma é que seus benefícios foram muito menores do que os transtornos que causou.
              O atual acordo é a segunda que acompanho, tendo lecionado na sua vigência, e respeitado seus ditames na escrita até que passou a valer a última e nunca definitiva mudança no léxico português, não sendo as regras fixas, variando com o tempo.
              Inicialmente, pensei nos livreiros que se dizem prejudicados, entregando milhares de suas prateleiras à doação e à reciclagem – um drama anunciado, segundo eles, em cujo mérito não pretendo adentrar, se há interesse de caixa e coisas que o valham... Mas, não foi o povo que mandou e desmandou na efetivação dessas alterações, vez que as diferenças ocorreram na escrita, muito insignificantes, diga-se de passagem, em face de ser impossível unificar o falar dentro de um mesmo estado, mormente dentro do Brasil, que dirá unificação do modo de escrever de vários povos! Durma-se com um barulho desses!
              Imaginei-me numa sala de aula, repassando as novidades para uma classe de “quinta”, onde grassam os engraçadinhos de plantão, pouco ou nada interessados nessas mudanças:
               – Falarei hoje sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Quis motivar, chamar a atenção. – Vocês sabiam que, a partir de agora, vamos escrever linguiça sem trema (tive que corrigir o computador, desatualizado), bem como sequestro (corrigi novamente)...
               – “Fessora”, isso daí eu não vendo, não sou eu quem compra, para mim, esse rango só não pode perder o sabor, o resto é limpeza, porque não vou roubar ninguém, muito menos escrever bilhete de resgate... Sou da paz...
               – Engraçadinho! Prossigamos: os diferenciais nas palavras homófonas, do mesmo som, como pera (fruta) e para (verbo parar) caíram.
               – O que cai ou ficou pendurado também não rola e dessa fruta eu como até o caroço, não precisa espichar a lagartixa, me poupe os detalhes. Li que uma porção de brasileiros são analfabetos ou funcionais e eu to nessa!
               – Não me interrompa, até você, menina! Ainda têm o pode (passado) e o pode (presente), esse diferencial não existe mais.
               – Ah é? Desde quando se pode muita coisa no passado ou no presente, nesse mundo de repressão contra as “minas”, onde ninguém se entende. Estamos conversados, tudo muda mesmo, mas continua na mesma. Sabe, “profa”, eu sou blogueiro, minha velha gosta de economizar a luz, eu economizo letras, dá uma adrenalina e todo mundo entende. Confundir é a minha praia!
              Passando por cima de tanto descaso, acrescento:
               – A partir de agora, eliminaremos o circunflexo nas vogais repetidas como voo e enjoo, outros exemplos...
               – É uma baita de uma besteira – argumenta outro lá do fundão – eu é quem vou enjoar com essa churumela, para mim isso não passa de desacordo ortográfico.
               – Voltando ao tema, o acento agudo que abria o som nos vocábulos jiboia, ideia...
               – “Virge”... Danou-se tudo agora, tenho de saber que a cobra não tem mais acento ou assento, nunca teve mesmo e o que eu não tenho na cabeça continua não valendo nada... To fora!
              - Não aguento mais, sem trema ou com trema, desse jeito não vai dar tempo de falar nas paroxítonas com i e u tônicos que formam os hiatos e na readmissão das letras K, W e Y!
               – Ninguém sabe aqui o que é hiato, não é, gente boa? E ninguém sabia que essas daí tinham perdido o trampo?
              Ignorando a balbúrdia, passei a falar do circunflexo retirado no plural do modo indicativo e subjuntivo, quando é dobrada a vogal nas palavras como releem, veem e sobre o hífen que foram mantidos nas palavras compostas, quando termina em vogal e o segundo elemento começa com r ou s. comecei dando os exemplos, antissemita e contrarregra.
               – Basta, tia, eu também sou contra as regras e não manjo muito essa coisa de religião e esse assunto já lotou os sapatos!
               – Mas qual é o motivo pra tamanha rebeldia?
               – Acompanhe o raciocínio. Agora vou ter de aprender duas vezes. Tenho de saber como era, o que eu nunca soube. Acento pra mim era tudo facultativo, na liberdade, pra saber como ficou. É muito pra minha cachola.
               – E é demais pra minha também. Se não levarem a sério a reforma e aprenderem como ficou a escrita a partir de agora, vocês continuarão de mal e pior e ninguém ganha com isso.
               – Ganha sim, isso não veio de graça, não é galera? Papo brabo esse! Mas, tia, algumas regras eu sei de cor, pois continuo muito sexy, com Y e tudo; não perco um show com W da minha banda; faço meus downloads de boa na NET, com todos os gigas e os megabytes que tenho direito, com Y, w e K e isso é tuuuuudo!
               – Desisto!
              Brincadeiras à parte, toda mudança de regras estabelecidas, ainda que insignificante, gera confusão e controvérsias. A atual nos parece parcial e provisória, apenas um início para outras mais completas a serem estudadas no futuro. Mas tudo bem, entre mortos e feridos, escaparam-se os espertos!

Dora Tavares

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