UNIFORME ESCOLAR PELO RESTO DA VIDA
Minha memória sempre falhou. Agora só tenho certeza que ela não funciona.
Algo que me incomoda profundamente é repetir as roupas com as mesmas pessoas. E costumar acontecer com freqüência. Com mais assiduidade do que gostaria.
Não passaria pelo vexame - que talvez unicamente eu perceba - se eu tivesse roupas descartáveis, como pratos e garfos de aniversário. O que não teria a menor graça. Bastaria comprar as camisetas de futebol do camelô. Numa lavada, elas desbotam e mudam de time. Já vi o verdão do Palmeiras virar o amarelo do Brasiliense.
Espaço o uso de camisas por uma semana - e trato de repetir exatamente no dia em que a vesti pela última vez. Exemplo: segunda, na aula de rock. Fui reparar que estava com a camisa da última aula e da penúltima aula e da antepenúltima aula. Cinza brilhante. Os alunos devem pensar que meu guarda-roupa está deitado em uma mala. Talvez até numa mochila, diante da escassez de alternativas.
As mulheres escondem o jogo com os acessórios (cintos, sobreposições, sapatos, colares). O homem é cru e se entrega. Homem feio, então, é mais cru ainda, tem a roupa como o acesso de alteridade. É seu elo perdido. A derradeira distração de si.
Minha memória funciona por empurrões, no desespero. Eu me dou conta depois que deixei a casa e não vou retornar.
Crio uma obsessão com o figurino. Um fetiche. Há pilhas e pilhas de opções no armário, mas vou escolher sempre as preferidas do momento, que compõem uma semana inteira. Tomo aquelas peças que comprei recentemente e que ainda guardam a sensação de novo, de imprevisto, de visibilidade inédita. Pena que meu ineditismo dura muitos meses. Mais do que as parcelas empenhadas no cartão.
Acho que o uniforme escolar me influenciou pelo resto da vida. Vou entendendo que tenho a minha roupa de quarta-feira. Como um pregador de Bíblia no sovaco. Quem me enxergar na quarta-feira poderá supor que não troco de camisa e calça e tênis. Vai concluir que sou monótono. Não me envergonho de ser monótono, fico ruborizado por não conseguir disfarçar. Espero que não pense que sou sujo.
Quando faço fotos de divulgação de um livro, preciso queimar a roupa em seguida. Se apareço num lançamento, numa palestra ou numa oficina com idêntico traje dos banners e das imagens nos jornais, há a impressão de condenação perpétua. Ou de que sou meu ventríloquo, minha holografia.
Os amigos sofrem de igual repetência. Coitado de mim, eles sequer notam. Esbarro com Frank Jorge na segunda e ele porta sempre a camiseta preta do Rolling Stones. Pairo dispersivo em sua frente, não me concentro na conversa, acredito que a aquela boca linguaruda um dia vai cuspi-lo. Ansioso para comentar que o tecido está gasto, mas me contenho porque no universo masculino não existe essa franqueza feminina. Torço na verdade para que ele venha com outra indumentária. Por que não se converte ao Hare Krishna? Já tive um pesadelo que Frank mostrava sua residência e flamulavam centenas de camisetas da boca de Rolling Stones nos cabides e nos varais. O sofá, as almofadas e as cortinas tinham também a estampa. E babavam loucamente.
Ele me convidava para sentar na sala e não podia aceitar. Seria engolido. Se os lábios fossem de Keith Richards com seus dentes de uísque? Argh, não nasci para ser Gina.
Mario Corso disfarça com suas camisas listradas. Invariavelmente listradas, de cores diferentes, uma tática que embaralha a fixação. Com certeza, ele repete as combinações, porém impossibilita a comprovação do tédio. Impõe o astigmatismo no interlocutor. Paulo Scott recorre à estratégia Hering, camisetas básicas, que desaparecem discretas na íris. Não chama atenção, muito menos perde o interesse.
Lamento que tenha demitido as gravatas, a esperança de cor que restava para me enganar.
Fabrício Carpinejar
Do blog: http://www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br/