Não existe inveja no bom sentido

Admirar é reconhecer no Outro algo que transcende, que está acima do nível comum. Implica desejo de vida longa, para que a pessoa admirada continue produzindo o que causa espanto e emoção nos seus semelhantes. Ou, quando é o caso de alguém que já partiu, que mantenha intacto o perfil de sua trajetória ou a grandeza de suas obras.Implica também renúncia, pois quem admira reconhece no Outro as qualidades que não possui, ou compartilha, ou seja, divide.

Inveja é exatamente o contrário. É o desejo de roubar a obra alheia, e, em conseqüência, eliminar de todas as formas não apenas a autoria, mas o autor. É manifestação do Mal e só existe nesse sentido. O invejoso é incapaz de admirar, então quer ter o que pertence a outra pessoa. Flagrado, muitas vezes por ele mesmo nessa posição mesquinha, defende-se dizendo que sua inveja é “boa”, ou no “bom sentido”. Ludibriar o que sente de verdade, driblar a percepção alheia sobre seu crime, é a esperteza dos falsos inocentes.

“Certo”, diz essa versão, “fui pego invejando, mas veja bem, estou no fundo admirando”. Então por que não diz que admira? Porque admirar, nesta selva de egos repulsivos, é estar em desvantagem, é admitir que alguém tem a chave e o carisma. Isso pode causar prejuízo! O invejoso não consegue permitir (pois pode perder dinheiro) que Deus distribua sua graça para o próximo, nem entender que essa graça é infinita e faz parte de tudo. Basta prestar atenção ou esperar a sua vez, e não fazer como Caim, que não suportava Abel, o favorito. Admirar é fazer justiça, invejar é transgredi-la.

O mais difícil da admiração é que ela parece ser de uma injustiça sem fim. Por que fulano tem tanto, como se perguntava Salieri sobre Amadeus, por que Deus fez essa escolha? O talento considerado excessivo atrai a inveja mortal dos contemporâneos. A inveja é a véspera do assassinato. Quando o talento é saqueado, a beleza apunhalada, a generosidade traída, todos sabem qual é o instrumento da destruição. É fácil detectar a origem. Normalmente, o criminoso bate no peito, orgulhoso da sua inveja.

No “bom sentido”, claro. Ou seja, ele é ruim até o osso, mas quer posar de bom garoto. Ele fez tudo para que alguém acima da média fosse esquecido, pilhado, achincalhado, mas ninguém notou a autoria do crime. No fundo, vejam, ele "gosta" de quem o desmoraliza! Pois não canso de repetir: a mediocridade fareja o talento e o elimina porque o talento desmascara a idiotia bem pensante, a pose da correção impoluta, o latifúndio da presença sem brilho, a imensidão da vulgaridade bem remunerada.

O rei está nu, diz o gênio, que tem o dom de ver mais do que o normal. É por isso que os grandes espíritos ficam em desvantagem e morrem esquecidos num hospital público, entubados, respirando por aparelhos até se irem aos poucos, enquanto os invejosos preparam suas notinhas mesquinhas, tentando enquadrá-lo em alguma gaveta usando um expediente maroto: o de fazer caber num dedal o mar oceano.

Cabe a nós, os que lamentam a perda, resgatar o verdadeiro sentido de uma vida que tudo deu de si e extrapolou, enchendo de sabedoria seu tempo e seus semelhantes. Cabe também a nós denunciar quem , de maneira sorrateira e na maior cara de pau, diz que o erudito não passava de um reles resenhista e seu romance, ignorado em vida, era bom mesmo.

Invejosos, cuidado. Tudo tem um limite. Estamos atentos.

Nei Duclós

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