As Traças da Paixão, de Alcides Nogueira
“São as desgraças da sorte
são as graças da paixão”
Face a Face, Cacaso e Sueli Costa
A medida que o texto avança, começamos a acessar diversas visões, várias interpretações e possibilidades, que nos levam a refletir sobre realidade/irrealidade, invenção/sonho/desejo/projeção, fantasia/fantasmagoria, memória/reminiscência/criação/re-criação, e outros conceitos bem complexos de serem distinguidos na vivência cotidiana, devido a limites imprecisos. A narrativa, metalinguisticamente, já se ultrapassa a si mesmo, atingindo além do que propõe sua fala: não importa, por exemplo, se o incesto aconteceu ou não, embora o incômodo e a desfamilirizaçã possam também passar por esse ângulo (para mim, confesso que o climax de maior tensão foi a morte do gambá imaginário, jorrando sangue... naturalmente cenográfico). Diante da commedia del'arte cotidiana, a carnavalização que o texto nos propõe é a incursão pelo estranhamento da própria transgressão, o ingresso no campo do travestimento do imaginário, e, como não poderia deixar de ser, a releitura dos mitos na contemporaneidade.
Incessantemente, em um presente imóvel, porque atemporal – no sentido de conter todos os tempos –, a peça “As traças da paixão” constroi, desconstroi, reconstroi diferente, em um retorno
ininterrupto, porém sempre diverso às origens arquetípicas de uma memória-reminiscência, como desejava Walter Benjamim, preservada e enraizada em nós. E a peça questiona esse processo de modo muito sutil, daí, repito, o tema sugerido para o debateter sido brilhante, por enfatizar não só este aspecto como um outro: o que haverá, de fato, de brasileiro dentro da carvalização. Se ufanismo (pelo Dicionário do Aurélio) é a “atitude, posição ou sentimento dos que, influenciados pelo potencial das riquezas brasileiras, dele se vangloriam, desmedidamente”, diante de tal mosaico de retalhos fragmentados, a questão talvez nem seja mais o repensar sobre o purismo da identidade nacional (tão discutida pelos modernistas), pois não temos mais quaisquer dúvidas de que uma cultura é interpenetrada por dezenas de outras, da grega à norte americana; talvez caiba então, agora, a descoberta da ufanista viagem pelo desmedido, pelo exesso, pela desmensuração. Esse, a meu ver, é um dos elementos principais que a peça evoca e sublinha. Por isso, a única sobrevivente à barbárie cultural (que atinge também as memórias afetivas) talvez seja a traça, que carrega em sua insaciedade a insanidade, o desvario, o próprio desregramento dionisíaco, destruindo tecidos, malhas, móveis, redes e papéis, mas mantendo-se viva e ativa em um mundo mutável, com o qual colabora, ironicamente, para muitas de suas transformações.Leila Míccolis