Talvez amanhã

Se eu pudesse não escreveria um livro, não plantaria uma árvore, não teria filhos. Seria  inverso ao postulado do homem pleno. Comeria fast-food's pelo resto da vida. Teria uma colônia de formigas. Faria engenharia espacial ou física quântica. Escreveria não um livro, mas cartas aos familiares, poemas bobinhos à namorada, declarações de amor no asfalto para que de longe o telescópio do Google Earth fotografasse. Enterraria lembranças num porta-joia que o mundo, daqui trocentos anos, descobriria ao abrí-lo, "é um homo sapiens da classe dos reminiscientes". Olharia o mundo como um cego. Já viram como um cego enxerga o mundo? Ele vê coisas que ninguém nunca viu, coisas que estão além daquilo que se vê.
A vida é curta. É certo. Muito curta. E basta do destino o seu sopro para que a tão desejada ordem não passe de origami ou mancha de maionese na camisa ou, na pior das hipóteses, papel de presente embaixo da cama ou ainda, na pior da pior das hipóteses, um pernilongo na parede esmagado.
Tenho vinte e seis anos e me orgulho dos meus vinte e seis anos. Daqui trinta anos, se não ocorrer nenhum movimento brusco em minha vida, terei cinquenta e seis anos e me orgulharei dos meus cinquenta e seis anos. Por quê? Porque a vida é curta.
E para estes 1/3 de século vi, questionei. Posso dizer, e deveria me orgulhar ainda mais dos meus vinte e seis anos, que questionei o Nobel de Literatura. Claro, após ter questionado o Jabuti de Literatura e após ter questionado a professora Valéria de matemática e após ter questionado a freira da paróquia e após ter questionado por muito tempo minha mãe.
Em meio a tantos questionamentos e visões - algumas das minhas visões nem sempre tão reais - percebi que não tenho um sonho. A propósito, há cinco anos que não sonho. Eu não tenho um sonho de que cachorros não perseguirão gatos e gatos não pularão em papagaios e papagaios deixarão de comer sementes de girassol e, como um estenógrafo das babaquices de seus donos, deixarão de repetir um vocabulário de trezentas e quarenta e uma babaquices de seus donos. Também não passo filtro solar. Também não tenho o segredo do pensamento positivo para que conquiste a tão almejada vaga no estacionamento do supermercado.
Algumas coisas que funcionam para mim, certamente não funcionarão a você. Alguns valores que possuo, certamente não serão debitados em seu extrato bancário no quinto dia útil do mês. E esta é a graça da vida. A vida que de tão curta nos proporciona uma infinidades de se de incertezas. As surpresas. Boas ou más são as surpresas que temperam nossas vãs filosofias. Mas com certeza, de tudo isso que falei, o mais importante é o amor. Não o amor de promoções de dia dos pais, de dia dos namorados, de abraços e feliz ano novo no Reveillon, de crisântemos e túmulos em finados. E sim o amor.
Seja o amor por alguém ou por um carro financiado em quarenta e oito prestações. É o amor que impulsiona. Se cabe às surpresas o tempero, é no amor que, enfim, a vida se serve de combustível, de força para que continuemos seguindo. Amar é verbo infinitivo e não depende. Pelo contrário, mostra-nos a infinitude do que podemos ser. E ser é sempre hoje. Porque amanhã, talvez amanhã, por ironia do destino; talvez amanhã sobre nós em nós mesmos não passemos de simples "eu fui", não passemos, na boca de terceiros, de "ele foi". Amar é ser submisso. Não a submissão pejorativa, opressora. Submissão a algo maior e que nos deixa inquieto para conquistá-lo.
Já disse que não tenho um sonho? Pareto desenvolveu a teoria da escolha onde sopesamos satisfação e necessidade. Bem... Eu não tenho um sonho. Ganhar o Nobel de literatura é fácil, salvar um país subdesenvolvido da miséria é fácil. Embora demande tempo e esforço, é fácil. Difícil, particularmente falando, é olhar para as fotografias e compará-las com realidade. Ver alguém que no retrato ocupa um espaço, porém na realidade está só como lembranças. Imaginar daqui cinco anos uma formatura com lacunas. Difícil é reconquistar, cultivar todos os dias aqueles que cativamos. Dizer àquela ou aquele que amamos o quanto o amamos e não nos ver anestesiado por rotinas, protocolos, burocracia. Difícil é olhar para a cadeira vazia em festas de aniversário. É, hoje, à espera daqueles que não mais se espera. É apresentar parentes para parentes distantes e mostrar que distância é só um mero substantivo, mesmo que este substantivo seja abstrato, um substantivo para além da vida. É suportar a única dor que sufoca: a dor da perda daqueles que amamos. A dor da perda de nosso sentido de amar.
Em nossas teorias da escolha ora refletiremos sobre as estradas que se abrem como um leque de cartas. No entanto, o peso de dizer o quanto se ama é maior. Não são as drogas, a gripe suína e inúmeros outros fatores sociológicos que matam. Não... É o não dizer, o arrependimento que mata mais. O não amar é que mata.
A propósito, há cinco anos não sonho. E eu posso escrever um livro e comer fast-food a vida inteira. Posso aprender física quântica, ter uma colônia de formigas, plantar uma árvore, ter filhos, escrever poemas bobinhos à namorada. Posso e quero. Assim como quero daqui a pouco abraçar meus quatro filhos da raça cão. Posso, inclusive, abandonar uma bolsa de quarenta e dois mil reais e me tornar pescador no nordeste ou fazer um piquenique na Patagonia em dia de chuva. Posso e quero. Não abandonar a bolsa, mas fazer um piquenique na Patagonia em dia de chuva. Não tenho sonhos. Tenho realidades que posso conquistar. Sempre. Sonhos são etéreos, visão platônica grega-filosófica-helenística das psicanálises. E não acredito que o homem não possa atingir, conquistar. Seria a limitação do infinitivo. Deus disse que no princípio era o verbo. Então, era o verbo.

O que nos torna diferentes é a nossa capacidade de escolha, a nossa capacidade de amar. O quanto suportamos e o quanto sentimos saudade, conseguimos lembrar. O quanto somos hoje. É o que faz a diferença. E somos muito.

Diego Ramires

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