Uma Resenha Atrás da Outra

                  Mário de Andrade foi um dos muitos escritores que formou o principal da sua crítica literária nas páginas das revistas e dos jornais, com notável militância e regularidade. A uma das compilações deu o título de O Empalhador de Passarinho (1944): obviamente, o escritor paulista aproximou sua atividade crítica à de um taxidermista, que paralisa e conserva o animal (no caso, a literatura) em alguma posição ideal para estudo e análise. No livro, contudo, não há qualquer prefácio explicativo sobre as escolhas feitas em seu período de atividade jornalística. Mas, tal como informou no indispensável Aspectos da Literatura Brasileira (1943), se pode presumir que os seus ensaios foram escritos "mais ou menos ao léu das circunstâncias e do meu prazer".
                  A compilação de resenhas, portanto, pode muitas vezes resultar no surgimento de um "livro involuntário" - conforme a certeira definição dada pelos organizadores dos artigos até então dispersos de Alexandre Eulálio. Erudito e fortemente atraído pela pesquisa histórica, o crítico parecia desinteressado em conceber livros, havendo publicado apenas A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars (1978), como se insatisfeito com as informações que encontrara em seus estudos de especialista. Na mesma linhagem do livro involuntário podem ser incluídos os ensaios críticos de Walnice Nogueira Galvão, em Saco de Gatos (1976), que não trazem qualquer registro sobre onde foram originalmente publicados ou explicação sobre sua circunstância. Em casos assim, o leitor está diante de critérios de seleção desconhecidos, embora possa ler textos tão circunstanciais e prazerosos quanto os de Mário de Andrade.
                  Contrária à noção de livro involuntário está a de "eixo articulador" - conforme define Luiz Costa Lima na introdução a Intervenções (2002), que explica haver reunido os seus artigos com "o cuidado de que não fossem uma simples miscelânea". No caso do material publicado em revistas diversas e suplementos culturais, a obsessão do crítico é notável, bem como sua aflição por saber se teria "alcançado a unidade que espero de um livro". Ora, a singularidade da publicação dos livros a serem analisados, entre outros fatores, poderia até mesmo se tornar uma dimensão a enriquecer a interpretação do crítico, e não um obstáculo do qual este pretende escapar de modo sinuoso. Igual e aflitiva tendência caracteriza o modelo de alta crítica literária que é A Voz e a Série (1998), de Flora Süssekind, no qual a reunião de um "material de certo modo heterogêneo" e a aparição do que "não é um livro planejado como tal" apontariam, contudo, para as duas linhas de investigação mencionadas no título.
                  Involuntária ou não, articulada ou não, a crítica literária não deve escapar a seu destino mais evidente: o potencial para influenciar as tendências de pensamento e, desse modo, o gosto e os modos de desfrutar. A atividade crítica provoca importante reverberação social, com efeitos no mercado que devem ser continuamente aferidos e avaliados. Motivações econômicas - que, no seu limite, ameaçam até mesmo a existência do livro como objeto - procuram reduzir o espaço da opinião naqueles meios que há pouco serviam com galhardia ao debate de idéias. Nos jornais, multiplicam-se suplementos coloridos dedicados à televisão, aos carros e à informática nos quais toda apreciação crítica é trocada pela palavra de ordem do consumo. No inferno da cultura de massa, a resenha tem-se transformado em paráfrase insegura sobre o tema de um livro, mas não sobre o livro em si, e quase sempre se vale da linguagem editorializada de press releases e sinopses. Um romancista bem situado em relação ao problema, como John Updike - uma vez que é também resenhista insistente - conhece a responsabilidade da crítica, que prestaria "um evidente e desejado serviço social", conforme se lê na introdução a uma vasta coletânea de resenhas, Aproximando do Litoral (1983).
                  Em alguns casos, a influência da resenha ou do ensaio acaba transformando a obra sob análise. Eu e muitos leitores fomos surpreendidos pela decisão de Adélia Prado de abjurar 12 poemas de seu livro A Faca no Peito (1988) - primeiramente, em carta publicada neste Jornal do Brasil (10.03.1990) e, em seguida, na sua Poesia Reunida (1991). A raríssima atitude da poeta, que agradece as observações feitas por mim numa resenha, jamais contaria com a minha aprovação: depois de publicado, um livro (com suas idéias e sua forma) dificilmente desaparece de circulação. Combinam-se um elemento sacrificial e um gesto de renúncia religiosa nos cortes a que Adélia Prado se impôs e no uso do verbo abjurar, tanto mais intensificados nas entrevistas nas quais a poeta voltou ao assunto. O fato é que a sua decisão honesta e explícita muitas vezes ocorre a outros escritores, sobretudo os que se republicam em antologias ou compilações completas, embora de modo dissimulado e quase imperceptível para os que não acompanham atentamente uma obra.
                  É notória, nesse sentido, a poesia reunida e revista de Armando Freitas Filho em Máquina de Escrever (2003), na qual o poeta assume haver trabalhado "com duas facas": a do cirurgião (para o passado) e a do caçador (para o presente). Somente uma crítica genética poderá explicitar os componentes formais e o contexto cultural onde se processou a operação cirúrgica; mas logo se percebe que a filiação do poeta à Instauração Práxis foi remediada, quando não extirpada, com vistas a um calculado distanciamento daquela fase literária. Essa operação foi benignamente seguida por uma parte da crítica: seja na apresentação do livro, por Sebastião Uchôa Leite, que só comenta a obra do poeta a partir de 1982; seja no prefácio de Viviana Bosi, que só considera a filiação do poeta àquele movimento "por afinidade de espectro amplo". A simples consulta à bibliografia sobre Armando Freitas Filho teria o poder de contrariar tal percepção: a crítica literária, nesses casos, faz o poeta abjurar pelo menos uma década de formação e de opção estética, e não apenas alguns poemas.
                  Seja qual for a estratégia, a resenha não pode perder suas qualidades vitais: o primado da opinião, a ênfase analítica, a tendência ao debate. Deveria ocupar muito mais espaço do que costuma nesses tempos difíceis para a leitura que exige reflexão.

Felipe Fortuna

Publicado originalmente no Caderno "Idéias & Livros" do Jornal do Brasil, em 8/12/2007
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