Navegador de barco de papel
O pequeno barco do caderno escolar levanta âncora no bolso do homem sério e triste.
Um homem circunspecto, com tantos casos para decidir.
Quem o vê saindo assim para o trabalho de manhã cedo, terno, gravata e pasta, não imagina o que ele leva no coração.
Olha o mundo através das grossas lentes dos óculos, carrega perplexidades e sonhos que ninguém percebe.
O barco de papel desliza entre as vagas do dia pesado e cinza.
O navegador sonha a fuga do real, ao avistar o Guaíba da janela do gabinete.
A cidade vive dentro do rio uma existência invertida. No fundo das águas habitam seres harmoniosos, os gestos são calmos, existe esperança.
O navegador planeja o exílio do mar de conflitos e sofrimentos em que mergulha todos os dias.
No fim da tarde, caminha até a beira do rio, retira o barco do bolso, solta-o na água. Larga a pasta, tira a gravata, o casaco, os sapatos, empurra a embarcação e salta para dentro.
O vento com cheiro de água doce e dos habitantes que nela vivem expande a vela rumo ao Sul. Na quilha do barco o colorido infantil dos lápis de cor.
As ilhas observam a absurda solidão das pessoas no continente, a falta de amor, a falta de justiça.
Ele deita-se no fundo do barco, exausto, as mãos atrás da nuca. Olha as estrelas e a lua que aparecem no céu. Anseia um lugar em que possa ter tempo pra sentir, pensar, conviver, olhar a paisagem.
Peixes prateados saltam pelos lados do barco, nadando na mesma direção.
O Sol se põe. Estar só no crepúsculo é o de menos.
Difícil é largar o barco dentro d'água, soltar a vela, buscar outras margens.
Difícil é não ser igual à pedra nem se dar por vencido.
No fim de todas as tardes, ele foge com o menino que mora dentro dele.
A felicidade civil de sentar no barco, olhando a cidade de longe, o movimento dos aguapés, a aquarela do pôr do Sol.
O rio abraça Porto Alegre e suaviza suas dores. O afeto natural e não correspondido ao longo dos séculos.
O navegador do barco de papel presta atenção no ritmo das ondas, nas gaivotas, biguás, reflexos.
O rio está povoado de céu e peixes (sim, há peixes vivos, estrelas e nuvens dentro do rio).
Sinos tangem a misteriosa melodia do entardecer sobre as águas do Guaíba
Outra realidade habita o ermo das coisas.
O coração das pessoas é diferente do que aparenta ser.
O poder e a vaidade perdem o homem. Barcos de papel, às vezes, podem salvá-lo.
Jorge Adelar Finatto
Enviada por Ricardo Mainieri