Controlando a vida dos outros

Prá quem não me conhece, eu sou um cara calmo, tranquilo, que vai escutar tudo o que você tiver prá falar. Mas não cometa a asneira de querer me enrolar com mentiras. Esse é meu ponto fraco. Tentou me manipular com mentira eu viro o bicho!

Pois bem, estou morando há uns dois meses em um prédio no centro da cidade de São Jose dos Campos. Carrego comigo só o essencial, e quando digo essencial, é o mínimo necessário mesmo! Por isso não tenho geladeira, máquina de lavar, microondas, televisão, toda essa parafernália que dá a ilusão de conforto num lar. Carro, então, nem pensar! A bicicleta me resolve a questão do deslocamento com ganhos sensíveis à minha saúde. Ainda uso colchão pois acabei perdendo o último curso de faquir em São Paulo. Tenho também um fogão, mas estou pensando sèriamente em aderir a essa moda de comer crú que está fazendo muito sucesso no meio alternativo. Do laptop não quero largar, pois sendo uma pessoa reclusa, eu certamente iria cair em depressão se deixasse de me comunicar como faço pela Internet.

Mas voltando ao assunto, quem lava minha roupa suja sou eu: em todos os sentidos. Tenho pavor de ficar jogando a responsabilidade pelo que quer que seja nas outras pessoas. Eu me acredito responsável pelos meus infortúnios e sucessos e resolvo tudo no âmbito interno, sem estardalhaço. Com a roupa física, a mesma coisa. Sou eu quem lavo, seco e pronto, porque o verbo passar não existe no meu dicionário. Mas secar não é assim tão simples...

Minha área de serviço não é lá essas coisas em termos de insolação. Daí que elegi a janela da sala de estar, que por sinal é um vitro enorme e todo envidraçado, prá secar minhas roupas... Primeiro porque a sala tem mais ventilação, e depois porque os vidros formam um efeito estufa que acaba secando a roupa na metade do tempo. Resultado é que nunca mais minhas roupas ficaram com aquele cheiro de cabo de guarda-chuva e me senti muito feliz de poder usar energia natural a meu favor.

Usei o expediente por algumas semanas, até que um belo dia o síndico me comunica que eu deveria ler a convenção do prédio, pois eu estava infringindo a mesma ao pendurar minhas roupas prá secar na janela da minha sala. Eu meio que estava desconfiado que minha alegria não poderia durar muito, mas fui ler a tal convenção, mesmo porque eu estava correndo o risco de infringir outras normas por desconhecimento das mesmas.

Qual não foi minha surpresa ao constatar que não existe nada na conveção, mas nem uma palavra que fale da proibição de pendurar roupas do lado de dentro da minha janela! No mesmo instante peguei o interfone e comuniquei minha indignação! O síndico ainda balbuciou algumas palavras, tentou me enrolar dizendo que as roupas não poderiam ficar visíveis da rua, mas eu fui firme. Como, com que direito ele queria interferir no uso do espaço interno do meu apartamento? Fechei meus ouvidos a quaisquer argumentos contra minha decisão de continuar pendurando roupas do lado de dentro da minha janela e desliguei.

Vou continuar secando-as desse modo ecológico, e vai ser preciso mudar a convenção (esta que eu li era de mil novecentos e alguma coisa), se quiserem me impedir de fazê-lo. Eu reconheço que as roupas podem ser vistas da rua e dão um ar de periferia desfavorecida ao prédio. Mas fazer o que? O entorno aqui é frequentado por prostitutas, travestis, camelôs, e uma infinidade de barraquinhas vendendo aqueles cachorros-quentes que são passaporte seguro pro vaso sanitário. Eu cho que quem está destoando mais não sou eu e sim os valores do síndico.

Gostaria da opinião de vocês. Outro dia o síndico e sua esposa viraram a cara prá mim. Será que eu sou um ET?

Chico Abelha

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