A Feira do Livro de Porto Alegre entre os interesses do mercado e os da sociedade
Há 25 anos não pisava na Feira do Livro de Porto Alegre. Um hiato bastante significativo para uma observação diferenciada de quem foi testemunhando as transformações cotidianas deste grande evento. Fui habitante assíduo daquele espaço. Visitante diário. Um “rato de feira”, como se diz. Se bem que sempre preferi ser apenas mais um ácaro. Na época não me parecia necessário refletir sobre os destinos da Feira, uma vez que eu era apenas um consumidor das minhas parcas possibilidades. Mesmo assim, notei que naquele tempo era possível encontrar Proust e Balzac nos balaios, coisa que nesta minha última visita pareceu absolutamente improvável. Até porque o gigantismo da Feira impediu uma investigação minuciosa em duas tardes de intenso “fuçamento” em balaios e stands.
O que me parece um primeiro e lamentável equívoco é observar-se a Feira do Livro de Porto Alegre apenas do ponto de vista do interesse econômico dos livreiros. Sim, a venda dos livros pode mesmo ter despencado 17%, conforme afirma a Câmara Riograndense do Livro. No entanto, dois aspectos precisam ser observados. O primeiro deles é a fuga do controle dos livreiros sobre a economia gerada pela Feira em seu entorno. Ou seja: precisamos observar o boom na área da economia criativa da cidade durante o evento, coisa que somente os incautos e os espertos entenderão que se resume à venda de livros. O segundo ponto a ser observado é comum na maioria dos eventos literários: a marginalização do autor e do leitor. Ou seja, o pecado da gula dos livreiros me parece que vem provocando um acentuado desprezo pelo início e pelo fim da cadeia produtiva do livro. Se isso é grave? É letal para um evento com a tradição da Feira do Livro de Porto Alegre.
Entrementes, não me parece que esse seja um problema específico da Feira do Livro de Porto Alegre. Ano passado, na Bienal do Livro de Fortaleza, participei de um debate com o “manda-chuvas” do Programa Nacional do Livro e da Leitura, José Castilho, sobre a circulação do livro no Nordeste. Tudo com um interesse, a princípio, radicalmente direcionado aos livreiros. Mais uma vez ao início e ao fim da cadeia produtiva do livro restou apenas o direito de levar um “cascudo”, em caso de questionamento. Foi o que aconteceu quando levantei o fato e recebi uma resposta bastante monossilábica e enjoada do Dr. José Castilho. O papo estava encerrado sem ter começado. Entrei na lista de discussões pela internet, acerca do mesmo tema, oriunda desse mesmo encontro de Fortaleza. No entanto, notei que os debates persistiam na filosofia da minhoca (sem cabeça e sem rabo). O autor e o leitor são detalhes insignificantes na lógica do mercado livreiro. Este fato me parece estranhamente consumado e lamentavelmente ignorado tanto pelos escritores quanto pelos consumidores de boa literatura. Podemos conferir, por exemplo, a insignificância de queixas nos Procons, contra livrarias e distribuidoras. E isso é péssimo porque qualquer mercado somente aceita o ajuste da marretada no cofre em nome dos direitos de cidadania.
Outras observações eu faria, mas ao abordar esses extremos, mesmo de forma jocosa (e não menos séria), o que eu quero dizer é que os problemas da Feira do Livro de Porto Alegre não são exclusivos deste magnífico evento que se sente sufocado pelo próprio gigantismo atingido. Todavia, devemos entender que é a própria visão do mercado do livro brasileiro que sofre de um retraimento devido ao pecado da gula do empresariado do setor. Por exemplo, a Feira do Livro foi sendo espichada até o Cais, certamente que com nenhum objetivo de afundar no Guayba. No entanto seus organizadores esqueceram que estavam, com isto, subtraindo de forma pouco inteligente o espaço de estacionamento dos consumidores. Desta forma, ou a clientela da Feira precisava escolher o tipo de assalto a ser submetida antes de cair nos preços pouco convidativos dos stands. Ou deixava o carro a mercê dos preços extorsivos praticados pelos estacionamentos do centro de Porto Alegre, ou aventurava-se deixando-o, por exemplo, no Alto da Bronze ou Parque da Marinha, arriscando-se em uma caminhada absolutamente insegura num centro charmoso, mas lamentavelmente abandonado pelas políticas de segurança pública.
Se não pensarmos que nada disso possa ter influência na queda das vendas, então podemos embarcar na canoa furada das opiniões vazias, como algumas que li nos jornais. Umas apontando para o conforto de comprar livros nas grandes redes de livrarias acopladas aos shoppings, outras citando até mesmo o “lamentável” progresso cibernético. Houve quem afirmasse, em um jornal local, que “há dez anos tinha conexão discada e que agora acessa tudo no Google”, como argumento à queda nas vendas dos livros. O mais lamentável disso tudo é que esse tipo de argumento pode levar uma reflexão sobre a Feira do Livro para um rumo inimaginável, historicamente falando, em termos de cultura livreira numa terra de grandes escritores como é o Rio Grande do Sul.
Parece-me coerente observar que a organização da Feira, assim como a maioria dos eventos literários, trata o autor (principalmente os emergentes), praticamente como intrusos e aproveitadores do mercado e os leitores, como uma massa a ser conduzida para os mais vagabundos caminhos da leitura fácil. Até porque o leitor crítico, ou seja, o amante da boa literatura é bastante chato e exigente. Não quanto a qualidade do ar rarefeito disputado pelas multidões da Feira, mas quanto a qualidade das obras à venda. Neste aspecto, sinceramente, achei mais cultural ser atendido pelos simpáticos atendentes do tradicional Cachorro do Rosário. A quantidade de stands da Feira, infelizmente, pouco respondeu em relação às necessidades básicas dos amantes da boa literatura. Em alguns, nunca vi tanto lixo impresso reunido. Parece que se optou mesmo em transformar a Feira num grande açougue de palavras. Não me pareceu importante refletir sobre a qualidade do produto oferecido. Me contaram que até mesmo os Jabutis e os Açorianos eram matéria rara (eu mesmo, nem vi).
Por outro lado, os stands das universidades gaúchas optaram por desconhecer completamente a realidade do tradicional público da Feira, optando pela exposição esmagadora dos chamados “livros técnicos”. Nas que visitei encontrei livros até mesmo de Educação Física (o que é muito bom), mas retratavam a completa desconexão da produção livreira das universidades gaúchas com a emergente produção teórica e criativa da terra de Moacyr Scliar, Carlos Nejar, Luiz Fernando Veríssimo e Donald Shuller. (Só para citar alguns dos grandes nomes gaúchos que orgulham a Literatura do Brasil.) Claro, impossível num contexto assim, repercutir o que vem sendo produzido pelos novos escritores gaúchos. Muito especialmente pelos de qualidade inquestionável. Esses, parece que já nem acreditam mais nas instituições e, muito menos, no chamado mercado do livro. A aventura dos blogs parece bem mais atraente que o Muro de Berlim das grandes editoras.
Portanto, analisando um evento como este, concluo que não há qualquer aposta do mercado do livro na Literatura. Mesmo os autores consagrados foram banidos dos planos deste lucrativo mercado. Isso não é privilégio da Feira do Livro de Porto Alegre. As vendas despencaram 17%? Sim, mas que tipo de reflexão isso pode gerar? Uma completa e covarde capitulação diante da lógica do mercado e do mau uso do conhecimento gerado pela cibercultura? Como diria, talvez, Pierre Levy, o consumidor da Feira do Livro de Porto Alegre ou de qualquer outro evento do gênero espalhado pelo país, ainda é “o mesmo homem que fala, enterra seus mortos e talha o sílex. Propagando-se até nós, o fogo de Prometeu cozinha os alimentos, endurece a argila, funde os metais, alimenta a máquina a vapor, corre nos cabos de alta-tensão, queima as centrais nucleares, explode nas armas e engenhos de destruição.” Portanto, não venham justificar a queda na venda dos livros com balelas desgastadas e de reflexão suprimida. Afinal, é o próprio modelo selvagem do capitalismo da Feira que está em franca decadência. Em alguns países, como a Austrália e a Inglaterra, a economia criativa (ou seja, a economia do conhecimento) transformou-se num vetor de desenvolvimento. Tony Blair chegou a criar o Ministério das Indústrias Criativas (sem chaminés) para gerir um setor que já domina 8% do Produto Interno Bruto Mundial.
A única saída para um evento do porte da Feira do Livro de Porto alegre é a Literatura. Da tradição à vanguarda. Dos clássicos aos contemporâneos. Parece que faltou cardápio num ambiente de intensa “degustação literária” como a praça da Alfândega. A produção emergente, a cena atual, precisa ter lugar de destaque e não apenas o cumprimento de agendas espremidas. Finalizo com o cochicho de Cavalheiro, um militar aposentado que, diante do stand (maravilhoso) da Caixa, o Degustação Literária, durante a palestra dinâmica de Laís Chaffe, recitou Olavo Bilac no meu ouvido e se queixou: “os grandes escritores foram banidos da Feira. O que resta de Literatura nessa Babilônia é muito pouco.” Isto vindo de um homem que testemunhou o nascimento da Feira, precisa ter algum eco entre a confraria dos patronos que a Câmara Riograndese do Livro concebe como único fórum legítimo para este debate. Um debate, aliás, que precisa ser maior que o sufocamento ao qual a Feira foi submetida devido à supremacia dos interesses imediatos dos livreiros. Livreiros que, aliás, não se preocupam minimamente com os mínimos detalhes, como o treinamento dos seus vendedores. As vendas despencaram? Sim, mas o que é que havia de atrativo aos consumidores? Livro não se compra por quilo. Pelo menos isso os livreiros deveriam entender.
Lau Siqueira