SOUVENIR
Os dois estavam esperando sentados perto dos táxis na rodoviária. Não foi difícil reconhecer meu amigo. Dez anos se passaram, mas a cara dele não mudou. Cabelos compridos, brinco numa das orelhas e uma inconfundível irreverência que salta aos olhos. Beijinho, abraço, apresentou a filha, que eu não conhecia, por coincidencia nascida no mesmo dia que eu, com 31 anos de diferença. A expressão do meu amigo me pareceu cansada, sem o entusiasmo de 10 anos atrás. É a única diferença que notei.
Meu amigo ama o Brasil. Diz que é primeiro mundo em relação à África. Segundo ele, São Paulo, pelo menos, é.
Onde vamos? Tanto faz, eles respondem. Eu decido levá-los pra minha casa, assim, enquanto rego minhas plantas quase mortas de calor, colocamos a conversa em dia. Falo só com o pai, a menina escuta atenta. Eles são franceses, mas falam bem o portugues. Ele trabalha para o Médicos sem Fronteiras. Uma missão de cada vez, com começo meio e fim. Agora ele está entre missões, vai se dar umas férias. Conviveu por tempo demais com a miséria na África. Mulheres estupradas, aids, fome, desnutrição infantil, crianças arregimentadas por exércitos coisas desse tipo. Quer distância de lá por uns tempos.
Mais à noite, comemos uma pizza e em volta da mesa, toda minha família escuta, atenta, as façanhas do meu amigo. Ele falou desde o convívio com governantes corruptos, passando pelo jeito de comer do africano (não come fora de casa por medo da comida estar enfeitiçada), até a carteira de motorista que ele tirou em Moçambique, já quarentão. Pode-se optar por comprar a carteira ou fazer o exame com o seu carro mesmo. Ele preferiu não pagar. O exame constava de uma volta no quarteirão, sem exceder os 30km por hora e chegar ao ponto de partida. Êxito! Não custou um centavo. E a carteira é válida na França, o que é no mínimo curioso, pois ingleses tem que fazer um pequeno curso de adaptação para dirigir na França. Antes que alguém diga que é por causa da mão inversa, saibam que em Moçambique a mão inversa também!
Dia seguinte, apanho-os no hotel e partimos para o local onde eu morei por muitos anos, no meio da mata. Ele queria conhecer a cabana em que eu vivera. Meu amigo já conhecia o local, mas muito antes de eu construir a cabana, ou as cabanas. Compramos algumas frutas e subimos o morro, uma puxada de 17 km, quase no topo da Serra da Mantiqueira. A paisagem seria mais bonita se não fossem as clareiras de pasto e as ilhas de eucalipto. Mas, uma vez adentrados na floresta, a civilização parece não existir mais. Na cachoeira, viramos bichos, tiramos toda a roupa e refrescamos os corpos. Os tres ficamos em silêncio, aquele silêncio que não incomoda. Pensei até em passarmos aquela noite na mata, de tão boa que estava a energia.
Quando o sol já ia se escondendo por trás das montanhas, tipo 4h da tarde, sentamos pra comer. Frutas, pão, queijo e patês franceses, isso da parte deles. Da minha parte eu levei arroz integral e caruru cozido. Eles comeram do meu e eu comi do deles… o do vizinho é sempre mais apetitoso!
No caminho de volta, eles quiseram olhar uma casa abandonada, eu desencorajei por causa do mato alto. Eles estavam de bermudas, eu tive medo de cobras. Uma picada de cobras nessa lonjura, a dois kilometros do carro e mais 17 da cidade, não ia ser nada engraçado. Acabamos indo mesmo assim. Eu na frente, ia abrindo o caminho pra eles. Fui o primeiro a entrar na casa, na varanda, uma espécie de deque de madeira. De repente eles começam a gritar que tem abelhas atacando. Eu mais que depressa mando que eles voltem correndo na direção de onde viemos. Eu fiquei, esperei as abelhas acalmarem e muito devagar desci do deque e fui em busca dos meus amigos. Desesperado, pois não sabia se eles tinham sido picados.
Encontrei-os a 500 metros da casa a cutucar os olhos. Tinham sido picados nos olhos! Os dois! Eu, em 25 anos lidando com abelhas, nunca levei uma picada nos olhos. Dei a eles uma planta cheia de seiva pra passarem nas picadas, mas não adiantou, eles disseram. A dor era muita, reclamava o meu amigo. Fui olhar de perto e constatei que o ferrão estava cravado no branco dos olhos. Por um acaso do destino, eu estava com meus óculos para enxergar de perto e com um canivete suiço que só falta falar e tem uma pequena pinça. Mais que depressa pedi que ele se sentasse e retirei o ferrão do meio do mar de lágrimas que era o olho dele. Em seguida, retirei o ferrão da pálpebra da menina.
Perguntei se eles podiam caminhar e tocamos de volta por carro. Na subida em direção ao carro, um silencio que incomodava. O passeio tinha recebido um grande golpe. Meu amigo, então, me perguntou que tipo de inseto tinha atacado. Eu respondi sem pensar, que eram abelhas africanas. Ele virou a cabeça e me olhou com o olho que podia enxergar.
— Abelhas africanas? Malditas! E eu que pensei que ia tirar férias da África!
Não sei como, conseguimos rir os tres! Uma hora depois eles já estavam desmaiados no quarto de uma pousada, após uma overdose de antihistamínico. Ninguém ficou cego.
Chico Abelha