"Uma explosão atlântica e a multidão vendo em pânico, e a multidão vendo atônita ainda que tarde"...
Uma das carretas do capeta estaciona na frente da mansão da Luiza Felpuda, na rua André Puentes, e, lá de cima, de um dos seus cubículos, observo as brancas raízes dos seus cabelos semidisfarçadas por uma cabeleira tingida por um negro mais escuro que as asas do morcego Drácula. Lá de cima, numa outra janela de outro cubículo do palacete de Luiza Felpuda vi a Via Láctea despejar um urinol branco com leite na cabeça da sua anfitriã peluda e fofa. E Felpuda cita Adélia Prado:
(...) "Discuti política, feminismo, a pertinência da reforma penal, mas ao fim dos assuntos tirava do bolso meu caquinho de espelho e enchia os olhos de lágrimas: não sou mais jovem."
Será que ainda terei tempo de assistir o filme E o vento levou? Ou de ler Os três Mosqueteiros? Em vez disso assistirei de novo Cantando na chuva.
A adolescência tem seus trágicos e irreversíveis mistérios e um deles estaria no arquetípico conflito e / ou desconfiança entre as gerações. Minha sobrinha S. Raquel me disse há dias que não se aproximara há mais tempo de mim porque me achava muito sistemático. Sim, provavelmente sou mesmo sistemático, mas quem não o seria? Os adolescentes também não acham que estão com tudo e que nunca irão envelhecer e morrer? Não é muita pretensão ou alheamento diante dos mistérios da existência humana?
Vivemos os primeiros dias da Primavera do ano 2001. Uma Primavera que começa com traumáticas perspectivas de guerra; sinistros atentados terroristas; crises de energia e até no abastecimento de água (nas cidades e no campo); fome na Àfrica, na Ásia e na América Latina (ocorrência e prognóstico cantarolado há décadas em ladainhas, sermões e em comícios enfadonhos e inconsequentes, infrutíferos) e uma onda generalizada de todos os tipos de violências, medos, incertezas e ceticismos muitas vezes confundidos com chantagens mafiosas e apocalípticas horrendas e moralmente devastadoras. Como as flores desabrocharão coloridas em meio a tantas trevas e tão escassas luzes? (...) Se o preço para uma profunda mudança na alma humana for assim tão pesado e alto que o paguemos logo, para nos depurarmos, mesmo que pelo sofrimento de inocentes e mártires. Mas, mesmo assim, continuo desanimado: isso já não ocorria há milênios? Será que não estaremos rodopiando em cíclicos retornos como baratas tontas? A espécie humana terá futuro? O nosso presente vale tantos esforços, suores, doenças e pesadelos? Perguntas expressas pelo meu ego adolescente.
Salete comeu salada de chucrute com canivete enquanto caia uma chuva de Chevettes velhos lá fora. Chevettes que ressuscitaram de um cemitério de automóveis. Salete detesta usar o óleo Salada na sua cozinha. Prefere sempre um óleo de milho ou de arroz. Salete tem olheiras fundas e sombrias como as de uma Nossa Senhora das Dores. Durante o dia ela trabalha em casa e fora de casa e a noite entra em guerra contínua contra os pernilongos. Esta é mais uma das causas das suas olheiras roxas e impressionantes. Parece que ela sofreu uma irreparável paixonite que só lhe rendeu nostalgias. Salete era prima da Suzete. Conheceu-a? Aquela da cartilha do Primário!... Lembra? Outra coisa: Salete tem sabor de vinagre. E, por falar em vinagre, devo lhe confessar: detesto vinagrete. Ainda mais se feito pela Salete. Cruzes! Xô!... Deixa eu correr para o primeiro minarete que eu ver na minha frente, Nossa!...
Nem só de hecatombes morre a humanidade, você bem sabe. Morremos também de morte morrida, por que não? Mas, esquecemos a morte lenta ou cotidiana e só nos amedrontamos diante da perspectiva de cataclismos bíblicos. Por que será? Depois do terremoto que a devastou em 1755, Lisboa precisou da liderança de um Marquês de Pombal para reconstruí-la. Será que os Estados Unidos teriam agora alguma liderança capaz de orientar a reconstrução de New York? Ou suas ruínas lá continuarão como no cenário final do filme O Planeta dos Macacos? Hércules já não existe mais... Cassius Clay não corre mais em bigas e sofre do mal de Alzheimer. F. D. Roosevelt repousa em seu mausoléu e Abrahan Lincoln foi assassinado. O que será da América, meu Deus?
Às vezes me elogiam...outros me depreciam, sempre me escancaro e me exponho perigosamente aos outros e, quase sempre, sem medir as conseqüências. Várias vezes saio arranhado ou dilacerado. Serei inconscientemente um suicida? Se o for que Deus me perdoe.
João Nery está com os seus netos em Boston e, no próximo domingo, meu sobrinho Marcel vai com a sua Annelise para a Inglaterra. Lá ficarão quatro anos. De lá Marcel retornará doutor em Economia e em Estatística. (...) Mas será que os números dizem tudo sobre o nosso presente, Paul Virílio? (...) Uma guerra mundial não pode prejudicar os projetos do meu jovem sobrinho, my God!... Ouça o meu pedido, Criador!...
José Luiz Dutra de Toledo