Para esquecer o animal que sou

                Não saio por aí atrás de todas as fêmeas. Transo com a patroa imaginando as outras fêmeas. Na falta destas e daquela, uso a cabeça de cima, onde a minha poderosa libido libera seus instintos primitivos.
                Detesto cheirar como animal. Passo desodorante no sovaco, xampus nos cabelos, raspo os pelos do rosto e, se fosse mulher, perfume vaginal. Também recuso cheiros de bípedes humanos dentro de casa: vaporizador nas paredes, pedras sanitárias nos vasos, incensos.
                Não pulo na jugular de meu inimigo. Negocio, tergiverso, sorrio. Rosno de raiva escondido no banheiro do escritório.
                Morro de vergonha de cair. Isso é coisa de macaco. Meu parente desprezado mas invejado por poder dar cambalhotas a vontade sem ninguém rir ou vaiar.
                Não defendo meu território com unhas e dentes. Disfarço, dou golpes baixos, puxo o tapete. Trancas digitais nas portas, câmeras vigiando as visitas, seguranças armados, quarto do pânico, botões de alarme? Ora, tem muitos bichos agressivos soltos do lado de fora.
                Raiva pura? Preconceito lavado? Libido à solta e explícita?
                Nada disso. Me reprimo, enceno, ator nato, meio canastrão, meio palhaço, mas este é o picadeiro dos bípedes civilizados, assim aprendi, assim faço.
                Coçar o saco que coça, catar caquinho no nariz, peidar com vontade, comer meleca?
                Só se ninguém estiver vendo. E assim mesmo com remorso e culpa de atos trogloditas.
                Olhar um bicho e me reconhecer igual a ele?
                Apenas se for meu poodle voltando limpinho do pet shop.
                Querer atacar os outros para tirar tudo?
                Que coisa incivilizada!
                Apenas quero lucrar, produzir, morar em condomínio, poluir em paz, especular na bolsa, corromper e ser corrompido.
                Aceitar o momento? Dormir quando não há nada a fazer?
                Nem pensar.
                Não sou leão na savana. Estou sempre alerta, mesmo quando não ameaçado.
                Sou é um bicho que faz tudo para esquecer seu lado animal.

Ulisses Tavares reprime sua vontade de andar de quatro. Coisas de poeta.

P.S: 14 de março é o Dia dos Animais.



Está faltando poesia, gente!

                Falta poesia na política, é evidente. Porque não se sonha mais alto e, pior, não se compartilha sonho algum. Se há sonho, só aquele que se sonha sozinho. Em geral de mais poder e mais bolso cheio quando se acordar eleito.
                Nos espaços de convívio coletivo, a poesia não aparece nem como ectoplasma, fantasminha camarada ou consciência fantasmagórica a lembrar que é possível sim pertencer a uma família chamada humanidade. E dá-lhe cotoveladas, mau humor, furadas de fila.
                Em repartições governamentais, bem, aí a poesia nunca habitou mesmo, a não ser por um ou outro poeta ganhando o pão de cada dia, sem trabalhar como a maioria, mas ao menos rabiscando seus versinhos.
                Nos chamados recônditos do lar, onde a intimidade deveria e poderia acontecer, que esposa ou marido, namoridos e namoridas, ficantes, recebeu um poema com café na cama, mesmo que poema ruim e meloso?
                Nas escolas, a poesia, patinho feio da literatura, tantas vezes vira enfadonha lição de casa sem chance de mostrar-se cisne.
                As religiões, justo elas -praticamente todas estão fundamentadas em ensinamentos escritos de forma poética, em versículos- colocam na interpretação dos versos uma camisa de força de comportamentos medíocres e abastardamento da esperança humana.
                As sociedades, em todos os quadrantes do mundo, ignoram a poesia no dia a dia. Embora clamem por ela em discursos hipócritas e nada convincentes. Canhões de laser abençoados, pessoas se auto-explodindo e explodindo outras pessoas, com a poesia clamando, agonizante, pelo valor das diferenças, pela riqueza das semelhanças, pelo livre fluxo dos contrastes.
                Os movimentos de reinvidicação, de protesto, seja do que for, nunca saem em passeatas por mais poesia. Querem coisas tangíveis, concretas, imediatas, e a poesia não se encaixa em tanta realidade.
                Não se pensa em um carro movido a poesia, pois já existem os pés livres de quem caminha pela força do coração, embora poucos sejam.
                E nem se imagina que uma relação a dois ou a mil ou a milhões possa ser poética, sem cintos de castidade, contratos conjugais, castigos cruéis por quebra de regras, disputas, aritmética e geométricamente tapas ganham dos beijos.
                Importante é produzir e o poeta está fora dessa, pois produz algo totalmente irrelevante como a poesia. Se ao menos produzisse dinheiro ou mentiras, tudo certo.
                As coisas que são de graça, fortuitas, deixaram de ser apreciadas. E, com isso, a poesia.
                Um por do sol, um unicórnio escondido atrás da árvore, deuses do passado de terno e gravatas, ninfas de boutique, o vale tudo se vivo estiver.
                Corpo de hoje, instrumento para a malhação, suado. Corpo sentido, gestos sutis, eutonia, que perda de tempo para a saúde, dizem.
                Ideologias de grande força perdem a energia na largada pela falta de poesia e se tornam pequenas ou tão grandes que viram sistema, opressão, desculpa, besteira.
                Mais que interpretação literal, poesia precisa ser lida pelo coração. E coração é o primeiro abandonado, deletado, desprezado, não usado na corrida insana de Ter cada vez mais para Ser cada vez menos.
                Estão ferrados os poetas. Está ferrada a poesia.
                Talvez não, porém, ou nem tanto. Estamos todos no mesmo barco. Se virar, nos afogamos.
                E ninguém vai se salvar.

Ulisses Tavares é poeta, coitado. Mas não menos que você.

P.S.: Por coincidência, 14 de março é também o Dia Nacional da Poesia.

Ulisses Tavares

« Voltar