O senhor é arqueólogo?

Ontem à tarde fui fazer uma entrevista com uma senhora que eu conhecia apenas por telefone, mas que tinha se revelado uma informante promissora para minhas pesquisas de folclore. Fazia um sol de rachar e eu não via nenhuma sombrinha para deixar o meu fiel companheiro de viagem, um celtinha 2006. Eu já tinha dado duas voltas no quarteirão quando avistei a placa de um lava-rápido mambembe, que normalmente eu nem pensaria utilizar. Sem muita opção, resolvi arriscar e deixei o carro nas mãos do rapaz que me prometeu o carro limpo e aspirado em duas horas.
Minha informante, que aqui chamarei de Rosa, é uma sexagenária muito simpática e que trabalha em uma instituição de inclusão social que forma menores das classes menos privilegiadas. Ela me recebeu em sua sala de trabalho e lá conversamos durante mais de duas horas.
Rosa teve uma infância rural, na qual vivenciou praticamente todos os costumes, tradições e festas folclóricas que são objeto de minhas pesquisas hoje. Com visível emoção, ela falou dos Catiras, dos Cateretês, dos São Gonçalos, dos terços cantados e da alegria que eram os mutirões de trabalho, costumes e festejos que estão quase extintos e hoje só encontram espaço em livros e espetáculos folclóricos. Por insistência minha, revelou receitas de remédios antigos, tais como o imbatível leite ferrado, um levanta defunto que sua mãe e avó preparavam contra lombrigas e a poderosa arruda queimada, que era tomada pelas mulheres recém-paridas, para limparem o ventre. Com carinho e saudosismo, Rosa me abriu sua vida e teria continuado a falar se eu não tivesse que sair para outro compromisso.
Nos despedimos, prometi voltar quantas vezes fosse necessário para que ela me contasse tudo que sabe e fui pegar o carro, que ainda não estava pronto.
Tive que esperar mais uns 20 min e aproveitei este tempo para conversar com o rapaz, o Célio, que se esmerava em dar os últimos retoques no celtinha.
Célio adora tudo que se refere a carros e quer montar uma oficina mecânica junto ao lava-rápido, que também faz as vezes de bar e vende cerveja, geladinho e refrigerante, segundo anuncia uma placa mal com erros de grafia, afixada em uma geladeira azul caindo aos pedaços. Célio é muito observador e curioso. Antes de me entregar a chave, fez questão de me mostrar que colocou de volta tudo que tirou do carro para poder limpa-lo. Junto com a chave, me jogou a pergunta:
— O senhor é arqueólogo?
Fui pego de surpresa. Arqueólogo? À partir de que ele tinha deduzido tal
coisa?
— De onde você tirou essa conclusão?
— O seu carro tava muito empoeirado.
— Mas o que tem a poeira a ver com arqueologia?
— Não, é que eu vi uns "panfletos" no seu bagageiro, que pareciam de arqueologia. Daí eu juntei com a poeira das escavações.
Eu nem me lembrava mais o que havia no meu bagageiro. Sei que guardo ali o triângulo de segurança, que é de lei; sacolas e caixas de papelão para acondicionar as compras e também uma bota reforçada, caso eu precise andar pelo mato. Mas que papéis seriam esses que ele viu? Tive que abrir o bagageiro para descobrir que ali estavam, esquecidos, alguns livros de folclore. Demorei alguns segundos tentando entender a conexão que Célio fizera entre o folclore e a arqueologia e quando a ficha caiu eu me rendi à evidência. Claro, num mundo urbanizado e repleto de tecnologia, as imagens nas capas dos meus livros, para o Célio, certamente eram equivalentes às de um dinossauro pré-histórico. Para não deixar o rapaz sem resposta, comentei:
— É, nunca tinha visto por esse angulo, mas de uma certa forma você tem razão, eu sou uma espécie não convencional de arqueólogo.
Dei 5 reais a mais para o Célio, mais pelo insight que ele me deu do que pela limpeza, que deixou um pouco a desejar. Não tinha rodado ainda nem um quarteirão, ao consultar o relógio do carro percebi que ele não tinha tirado a poeira do painel dos controles. Por causa do reflexo do sol, que batia justamente neste ponto do carro, tive que usar um papel para tirar a poeira e poder ver as horas. Tenho horror a chegar atrasado!

Chico Abelha

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