O inimigo do shopping
Num passado recente tinha eu por hábito almoçar pelos shoppings de Brasília na companhia do meu amigo Newton Guimarães. Aprendi com ele que shopping é um lugar onde você sempre encontra um inimigo. E a característica mais desagradável do inimigo de shopping é que ele sempre vem cumprimentá-lo.
Lá estava eu tomando meu café quando o inimigo tocou minhas costas. Trajava terno, mochila nas costas e o maldito crachá pendurado no pescoço. Se já não fosse meu inimigo, eu certamente teria problemas com ele somente por conta desse atentado estético. Mas a desgraça ia além.
Uma das coisas que mais me deixa agitado é ver um homem tomando sorvete de casquinha sem usar a colherzinha, ou seja, lambendo o sorvete. E era exatamente o que o inimigo fazia. Um espetáculo depressivo. Deveria ser proibido tal gesto. Sorvete de casquinha é um objeto fálico. Não deveria ser permitido aos homens sem o acompanhamento de uma colherzinha. Tentei me desvencilhar, mas inimigos de shopping são astutos e pegajosos. Põem a mão sobre seu ombro e estabelecem conversas insuportáveis que amarram uma a outra sem chance de fuga. O inimigo em questão era um sujeito com a asquerosa arrogância dos nascidos em berço esplêndido. Iniciou sua fala já na agressiva, desfiando um rosário sem fim de preconceitos e outras idiotices em referência a suposta falta de instrução de determinado político nordestino. Um espetáculo deplorável de arrogância, pretensão e outras falhas morais. Enquanto falava lembrei-me de uma frase de Millôr Fernandes: “Minha ignorância não é especializada, atinge várias áreas do conhecimento”. Traduzindo: somos todos burros! Uns mais outros menos, considerada a vastidão do conhecimento humano, não temos qualquer motivo para nos acharmos grande coisa. E, infelizmente para meu adversário, percebi que arrotava iguarias que não tinha por hábito comer. Não resisti.
Conta a história que no ano de 1965, antes de lutar contra Muhammad Ali, Floyd Patterson insistia em chamá-lo Cassius Clay. Ali tinha acabado de trocar o nome e não aceitava mais ser chamado Cassius Clay. Em virtude dessa teimosia de Patterson, durante a luta Ali o massacrou muito mais do que o necessário, enquanto perguntava: Qual é o meu nome? Inspirado nessa lendária perversidade parti para o ataque. Deixei que o inimigo de shopping prosseguisse com sua ladainha e lentamente fui conduzindo a conversa para o lado da literatura, terreno que eu sabia estranho a ele. Um pequeno comentário sobre Dom Quixote, outro sobre Crime e Castigo e um último sobre Grande Sertões Veredas. Como eu imaginava, não tinha lido nenhum. Saber relacionar o autor à obra, como fez na tentativa de esquivar-se dos meus golpes, não é nada. Era preciso que tivesse lido. Era preciso conhecer os detalhes da batalha entre Don Quixote e o Cavaleiro da Lua Branca, saber das dores morais de Raskolnikov, de Lisavieta, era preciso saber quem é quem ao ouvir falar de Riobaldo, Diadorim, Tatarana ou Reinaldo. O veneno escorria de minha boca enquanto a doutorência engravatada ficava sem palavra ou resposta a cada comentário “despretensioso” de minha parte. Como Muhammad Ali torturei meu Floyd Patterson sem nenhuma piedade. Esmurrei-lhe várias vezes o crânio, o estômago e as costelas, enquanto o sangue lhe escorria pela face frouxa de susto. Percebeu minha maldade.
Despediu-se derrotado e mal humorado. Certamente não me dirigirá a palavra até que se refaça do golpe e arme nova emboscada para mim num outro shopping. Estarei pronto.
A vida é realmente bela!
Osias Canuto