Componentes egoístas das manifestações
O resultado final é praticamente o mesmo, mas as motivações fazem uma enorme diferença.
Uma coisa é o sujeito ir para a rua, com a vida mansa e amestrada, e bradar por condições dignas de saúde, educação, segurança e transporte para toda a população quando tem tudo isso de sobra porque pode pagar por tais serviços, embora pague duplamente porque também paga os impostos que deveriam garantir esses direitos de forma universal; outra é exigir segurança quando está com um baita medo de ser assaltado ou assassinado, pouco se lixando quando isso acontece na rua de trás e, menos ainda, quando acontece nas periferias sociais.
Ou reclamar avenidas, túneis, aterros, viadutos e duplicações porque está muito difícil andar com o seu carrinho reluzente mesmo furando sinais, atropelando faixas de pedestres (quando não os próprios pedestres imprevidentes), amaldiçoando motocicletas e escorraçando bicicletas; mesmo estacionando sobre calçadas e obstruindo ciclovias ou ciclofaixas; mesmo furando filas e ultrapassando pela direita; mesmo fazendo dos acostamentos sua estradinha particular, mesmo ignorando limites de velocidade. Ele argumenta, prenhe de soberba: se todo mundo andar na velocidade máxima, que é baixa (para ele sempre será baixa), mais carros se demorarão mais tempo nas ruas, por isso é necessário correr, correr muito, para aliviar os congestionamentos. Como dizia Millôr Fernandes: quanto mais alta for a velocidade, mais rapidamente poderemos escapar da árvore que, de súbito, surgiu à nossa frente.
Brigar de verdade por saúde para todos quando se está com uma saúde de ferro demonstra um interesse autêntico no desenvolvimento do País - o que não significa que os diretamente prejudicados não coloquem a boca no trombone, o que poderia, no máximo, ser classificado como um egoísmo altruísta, posto que a reclamação e o interesse são de toda a coletividade.
Os palcos e os públicos das manifestações têm se multiplicado tanto quanto as próprias manifestações. O importante é empunhar uma bandeira.
Outro dia, por exemplo, foi numa farmácia. Existem, a respeito, relatos de testemunhas idôneas. O funcionário chamou o atendimento preferencial, o velhinho se adiantou, apresentou a receita, começou a falar e foi interrompido por um protesto veemente:
– Assim não é possível! Estou aqui esperando e já é o segundo preferencial que é chamado enquanto eu fico feito besta, sendo passado para trás! - e o jovem que assim protestava, próximo já da meia-idade, arrebatou o posto do velhinho junto ao balcão, exigindo respeito por seus direitos de cidadão.
Uma mulher, que até se diria fazer jus ao atendimento preferencial, não se conteve:
– É verdade! Anteontem eu estava num banco e só atendiam idosos. Eu trabalhando, com serviço para tocar, e ali esperando sem fim, durante toda a hora do almoço, enquanto todo mundo passava na minha frente. Isso também não está certo, já começa a virar abuso!
– A senhora tem toda a razão, moça – o rapaz a apoiou. – Antes o pessoal tinha que ficar de pé, nas filas, e até se compreende a preferência. Mas hoje, com todas aquelas cadeiras confortáveis que existem em todos os lugares para as pessoas aguardarem sentadas com um número na mão, não faz sentido algum travar o bom andamento da economia para atender primeiro quem não tem pressa alguma na vida.
O velhinho esperou os dois serem atendidos e correu para o balcão antes que aparecesse algum outro não-preferencial para tomar a sua vez.
Amilcar Neves