Água!

           Ou seja, no auge da crise hídrica na cidade de São Paulo, em que verdadeiramente o Estado inteiro esteve envolvido, a síndica daquele prédio – cinquentona como muitas por ali, a quem faltava momentaneamente o controle sobre os demais da outrora sólida família a que pertencia, reduzida hoje a tipos voláteis ­– convocou uma reunião de condôminos para saber o que lhes passava peça cachola em termos de mais aquela exiguidade: a de água.
           Soube-se que do conjunto o primeiro manifestante, do sexo masculino, que se autodefinia anarquista de quatro costados, havia ido direto ao ponto:
           – Se o governo acha que devemos economizar, que economizemos.
           Não houve nenhuma perplexidade declarada à vista, prova de que aparentemente haviam votado todos no candidato, pela segunda vez vitorioso, ao cargo de governador.
           – Já que se trata de consenso para nós, moradores, creio que não nos resta alternativa senão colaborar. Tenho uma a propósito, se desejam ouvir – sugeriu a solteirona pernóstica, no mínimo dez anos mais idosa que a comandante da reunião, graduada em letras em universidade pública, sem mestrado ou doutorado, e cumprindo pena por isso em escola periférica da rede estadual.
           – Desejamos, sim ­– aventurou-se a concordar sujeitinho visto como à toa, comerciante de loja decadente do Bom Retiro, comprada a prestações de dois irmãos judeus, cansados de enfrentar penúria.
           – Desejamos – repetiu automaticamente, em conjunto, meia dúzia de três balzaquianas de reconhecida má vontade, ansiosas por solução a curto prazo, ou seja, sem que precisassem incomodar-se.
           – Vamos ouvi-la, então, amiga – arrematou a síndica, loira de cabelos manchados de roxo, com certa determinação e atenta a rumores de várias origens, que começara de uns anos para cá a levar em conta.
           – Concordo – suspirou o anarquista.
           – Os banhos devem ser relativizados, em meu modo de enxergar as coisas. Não são franceses os especialistas em fazer isso? – argumentou se perguntando dona síndica, numa tentativa ora desesperada de fazer-se compreender e a um só tempo encarando cada um dos participantes da reunião, já então considerada uma assembleia, tal a disposição geral para o combate ao perigo iminente. Como não houve nenhum protesto na sequência, recordou: – Meu ex-marido, já radicado no Rio por uma década, me contou que tinha um solteirão lá que, embora residindo num prédio a uma esquina da praia de Copacabana, tomava banho no máximo a cada três dias, porque se considerava autêntico superocupado.
           – Sua sugestão é que façamos isso? – provocou a solteirona pernóstica, que tinha ciúmes do relativo prestígio da bela, como à cidadã sempre se referia.
           – Não chego a tanto, só quis mencionar o caso. Para mim basta que o fio d´água caia lentamente sobre meu corpo – a síndica com a palavra.
           – Hein? – enervou-se a respeitável vizinha de apartamento, no 6º. andar, convicta da importância do cargo de destaque da outra no edifício, qual seja...qual mesmo?
           – O único cuidado – apressou-se a responder a solteirona – é, pois, evitar que o chuveiro se queime, no caso de ocorrer uma, digamos, inviabilidade aquática?
           – Nunca haverá de acontecer! – protestou condenando-a a amável síndica. – Talvez o melhor mesmo seja usar uma caneca, no máximo um baldinho, daquele tipo com que as crianças brincam.
           Afastando-se do grupo especial a que se reunira desde o começo do encontro, que julgava o dos bem pensantes, e dirigindo-se a uma mesinha, de que supusera partir com mais tranquilidade seu pronunciamento, o músico, que na aparência se classificava como erudito apenas para rechear o próprio ego, malgrado de seu apartamento jamais houvessem ouvido uma única nota, arriscou um palpite:
           – Que tal a toque de caixa construirmos uma piscininha em que todos se lavassem, sem necessidade de substituir a toda hora o bem-amado líquido?
           – Compreendo, o senhor é um irônico, um gozador de mão cheia – contra-atacou a síndica, que desde o início parecia contar com o apoio dos eventuais relutantes e indispostos a esticar a conversona, resultante da conversinha inicial.
           – Falo sério, dona, dá para negar que se trata de uma alternativa claramente salutar – declarou o músico sem música.
           – E supereconômico – palpitou o comerciante do Bom Retiro.
           – Discordo com veemência – abriu-se o bancário Justiniano, 40 e tantos anos nas costas e, ao que se sabia, enorme chance de assumir uma das seções mais prestigiadas da agência do BB do bairro onde moravam, a que abarcava pequenas porém bem-sucedidas empresas da região da Lapa, não obstante de complicado acesso ao centro da cidade.
           – Por quê, meu querido amigo? – entrou na briga a solteirona pernóstica, adversária da síndica, como o resto do pessoal sem a menor dúvida a considerava.
           – Porque não é legal que moradores de um mesmo prédio tenham conhecimento pleno das imaginárias vergonhas de cada um – palpitou o respeitável homem da grana do pedaço.
           – Eu não tenho vergonha de nada de meu físico! – não se conteve a estudante de medicina Amelinha, adotada por um casal bacana de velhinhos do interior paulista, que viviam marcando presença na capital em feriados, a título de apoio moral e ao mesmo tempo para trocar figurinhas sobre o comportamento da garota, para quem haviam escolhido o caminho do bem, qualquer que ele fosse.
           – Imagino que a melhor providência a tomarmos seria apelar para os amigos que não enfrentam ainda o problema da carência de água – alegou o músico erudito. – Os que dispusessem ainda de tal facilidade a comunicariam a nossa síndica, que naturalmente informaria tudo a respeito da redução do consumo. Nós nos livraríamos dos perigos da falta d´água, o que, direta ou indiretamente, há de causar mal-estares e probleminhas de toda espécie ligados à saúde, sobretudo de gente medianamente idosa.
           – Um instante, jovem, nem de longe me sinto medianamente idoso, com meus 50 e poucos no lombo: faço ginástica diariamente quando acordo, caminho, corro, tenho vida absolutamente saudável e promissora – fez-se ouvir o grafiteiro Vítor Hugo, que ali a grande maioria ignora como sobrevive, pois para outras atividades, como o trabalho, por exemplo, não saía de casa.
           – Para o senhor é barbada, já que lhe sobra tempo – posicionou-se a solteirona.
           – Que que é isso, alguma acusação? – deleitou-se com a observação o atleta.
           – Não, em absoluto, só que não tenho condições de viver nessa folga, como o senhor. Sou obrigada a ir buscar o meu dando aulas em local afastado, embora não exatamente em região perigosa, cujos moradores enfrentam sem dúvida alguma problemas, tipo falta de dinheiro, como os jovens falam. Isto é, a palavra tipo, como certas criaturas utilizam por aí – assumiu a posição de ofendida a combativa professora.
           – Mil desculpas por me intrometer, só que penso que devamos ir por partes. Se não for assim, não dará certo – mudou de assunto Vítor Hugo. – Primeiro com certeza a cozinha, em que neste prédio, pelos cheiros que se espalham pelos corredores, se gasta mais do que o habitual em qualquer lugar. Bem, a que estou me referindo mesmo? Ah, sim, não vejo por que acionar a torneira, largando-a aberta diretamente sobre panelas e pratos. Enquanto isso, por exemplo, o camarada vai até o banheiro, folheia, quando não lê inteiro, o jornal, e aí se recorda de que a deixou livre e solta despejando o agora realmente precioso líquido.
           – Bem lembrado, bem lembrado – manifestou-se a respeitável do sexto andar. – Além do mais, em vez de lavar roupa a jato, como a tal operação que andam investigando, que tal lavar a seco, como se faz em todo canto?
           – Em tais circunstâncias, que providência, por exemplo, o senhor sugeriria? – quis saber a síndica voltando-se para Vítor Hugo, que, a seu ver, se sentia atônito com aquele excesso de malabarismos verbais.
           – No mínimo fecharia a torneira! – respondeu na lata o grafiteiro. – Se precisasse apenas tapar o sol com a peneira, poderia ajustá-la melhor, de forma que caíssem apenas umas gotinhas por minuto. Então mostraria disposição de colaborar, como imagino que desejem todos aqui.
           – Perdão, meu senhor, só que muita gente trata a água com liberdade desde que o mundo é mundo – brindou-os com sua opinião o homem do Bom Retiro. – Não me importo de pagar mais, quem quiser que cobre diretamente de mim. O ideal é que haja um controle sobre a água utilizada individualmente.
           – Impossível fazer isso! – protestou a síndica. – E nós temos outros negócios que fazer na vida.
           – Para mim nem é essa a questão – argumentou o bancário Justiniano – e, sim, fatiar o problema.
           – Sem dúvida – concordou a estudante de medicina.
           – Só que eu iria ao extremo e, como é superimportante, vocês não se incomodariam em escutar algumas banalidades grotescas? Querem ouvir? Por que ficar com o dedo grudado na descarga do banheiro, por exemplo, ao invés de contribuir com um simples toquinho – manifestou-se o homem da hipotética dinheirama.
           – E se ele não ficasse limpo – torpedou-o Vítor Hugo – e alguns pedaços de bosta pura continuassem no fundo da privada sem dar a menor pelota?
           – De fato, isso é pertinente – as mulheres retomaram a condução do bate-papo graças a síndica –, embora, óbvio, um pedacinho aqui, outro ali, não faça verão. Meu palpite: vamos nos limitar a um único toque na descarga, o que desaparece desaparece e o resto fica para a próxima.
           – É, boa saída – resmungou a primeira das três até então silentes balzaquianas, apoiada de cara pela segunda.
           Para contribuir, a terceira cumpriu sua parte:
           – Concordo sem tirar nem pôr.
           – Tudo bem, as teses defendidas aqui vão valer ou não? – cortou a síndica numa tentativa de reconquistar seu posto de líder de provavelmente perfeitas deliberações. – Um momento só, amigos, por favor, o porteiro está acenando para mim. Vocês me dão um tempinho?
           Deram  e começaram a resmungar, já que, de alguma maneira, se enxergavam como sólidos progressistas, capazes de assumir responsabilidades.
           Dali a 3 minutos a síndica retornou com a bomba:
           – Vocês não vão acreditar, contudo alguém lá do Palácio do Governo disse que a maioria da população não tinha vergonha na cara e que era inadmissível discordar das medidas propostas pelo chefe dele, todas para aliviar o sofrimento estadual. Gozado isso, não?
           – Vergonha na cara ele vai ver que eu tenho se pegá-lo pela frente – apelou o surpreendente músico erudito, que tocava pouco ou quase nada mas passava por conversador de mão cheia, cujo espaço de atuação ia do cubículo onde permaneciam de oito a dez horas por dia o zelador e quatro porteiros, que se revezavam ao longo do dia e da noite, até o portão principal do prédio, onde bate-papos furados eram motivos de interações entre condôminos.
           – Ok, ok, mas água..,, , quanto à água, até onde vai nosso sofrimento? – sintetizou a solteirona pernóstica. – Fico incomodada por não ter vontade de ler meus romances e meus poemas, enquanto essa porra continuar. – Sim, testemunham garantiram que ela usou de fato tais palavras.
           – Desculpe, só que para mim o que mais calou fundo foi a historinha dos pedaços de bosta aguardando a próxima descarga – observou, já se afastando e toda produzida a fina do sexto andar.
           – A gente tem de levar na brincadeira, se não se perturba à toa – alertou a estudante de medicina, em companhia de quem, algo ressabiado, se afastou do bolo de gente, ao fim da sessão, o músico erudito que, embora objetivamente sem tocar ou ouvir nada, raramente hesitava à hora de bancar o ousado.
           Naturalmente engrenaram um leve bate-papo até o portão do prédio e o camarada não perdeu a oportunidade para perguntar com uma expressão tão inocente quanto possível:
           – Você só estuda ou também ensina?
           Ela afastou-se sorrindo e talvez até gastasse alguns momentos de seu precioso tempo para enfiar definitivamente na cabeça que aquela não seria, em hipótese nenhuma, a possibilidade nem de uma profícua nem de uma remota amizade.

Wladyr Nader

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