Leiloando um fardão
Você quer comprar um fardão da Academia Brasileira de Letras?
A oportunidade chegou, pegar ou largar. Tem gente que só pensa na Academia. A chance é essa. Interessados, procurem Adda Guimarães. Aliás, o nome dela é o de uma nobre (como o fardão): Maria das Graças de Guimarães Afonso de Almeida. Nome de condessa. E pode ser encontrada no telefone (21) 2287-8072. Quem mora no Rio basta passar na banca A Cena Muda, ali na Praça Nossa Senhora da Paz, e olhar coleções de revistas antigas. Se você mora no interior, entre em contato pelo e-mail addadig@hotmail.com ou veja na internet.
Qual o meu interesse nisso?
Nenhum.
Há décadas que me convidam para concorrer à ABL. Na primeira vez, Afrânio Coutinho queria que substituísse José Guilherme Merquior e me garantia o apoio da bancada nordestina. Mas sou mineiro, lhe dizia. Além do mais, não acredito na imortalidade. Aquele fardão me dá a sensação de que estaria embalsamado em vida.
Mas pode ser que essa notícia interesse a algum colecionador ou a alguém que queira usar a vestimenta em casa para receber conhecidos. O valor atual de um fardão é R$ 70 mil. O município de onde provém o imortal paga a conta. Quantas cestas básicas vale um fardão? O pessoal do Contas Abertas acha que a Academia deveria pagá-lo. Como se sabe, a Academia é uma instituição rica. Dizem que o jeton de cada acadêmico está em torno de R$ 10 mil. Muitos alegam que entram para ABL por causa disso, dos planos de assistência e mesmo por causa do preço da sepultura, que está pela hora da morte.
Perguntei a Adda como o fardão veio parar nas mãos dela. Contou que uma senhora gorda e baixa a procurou em 2000 e ofereceu o traje com a casaca e mais uma toalha. Essa toalha é algo intrigante na estória. Também não sabe quem era essa personagem. Sabe-se apenas que o fardão foi usado em 1996. Eis uma boa pesquisa para os frequentadores de arquivos.
Contei à minha amiga, então, que viúvas de escritores costumam vender os livros dos maridos a qualquer preço, como vingança. Elas se casaram sonhando com príncipes, e os maridos viram uns chatos que não apenas gastam o dinheiro do pão dos filhos em livros, mas vivem enfurnados na biblioteca. É isto: escritor se casa com livros. Então, possivelmente, esse fardão é um misto de memória e vingança.
Curiosamente, o fardão que minha amiga quer vender ou leiloar é de lã. Diferente, portanto, do atual: roupa feita de sarja inglesa verde-escuro com ramos de café bordados de ouro. Além de ser de lã, é de lá, ou seja, uma cópia (mais pobre) do fardão usado na Academia Francesa, criada por Richelieu em 1635. Muitos já notaram esta contradição em Machado de Assis: o criador da ABL, que dizia que a Academia era para os notáveis, é o mesmo que escreveu o conto “Teoria do medalhão”, ironizando a troca de favores e os que sonham com prestígio social.
Eu pensava que o imortal era enterrado com o fardão. Mas essa roupa ora em leilão prova o contrário.
Lembrei-me de Aurélio Buarque contando que estava metido no seu fardão, indo para a Academia, e resolveu pegar um táxi. Ficou na rua acenando, até que o carro parou e o levou. O intrigado taxista olhava aquele homem vestido gloriosamente e perguntou, no seu linguagar popular:
– Sois algum rei? (Referia-se às festas de reisado, naturalmente).
Aurélio explicou que era da ABL etc. Como insistisse com o taxista para pisar no acelerador, pois estava atrasado, ele ponderou:
– Calma, doutor! Vestido como está, nada começa antes de o senhor chegar…
Affonso Romano de Sant'Anna
Fonte: Jornal Estado de Minas de 26/01/2014