Revolução Francesa

        Eu morava no 16, tido como bairro chique. Era mesmo, a se julgar pelos prediões suntuosos de mármore e algum ouro da avenida Foch e arredores. E pela tristeza e frieza do bairro em geral.
        Frio sim, não fossem as "chambres de bonne" ou, mal traduzindo, os quartos de empregada.
        As "chambres de bonne" já não tinham mais empregadas. Essas moravam em suas casa próprias, em dignos subúrbios. Moravam muito bem e obrigado. Suas horas valiam razoavelmente, e os mais ricos as pagavam. Para hospedá-las e contar com elas às onze da noite, como no Brasil, nem os mais ricos.
        Gosto de lembrar de uma história. Minha prima Simone, às voltas com sua tese, contratou uma faxineira para duas horas por semana. Um enorme investimento. A moça chamava-se Aurora, vinha de Portugal, adorava falar português com minha prima, ficaram amigas. Um dia Aurora convidou Simone para almoçar na casa dela, num desses dignos subúrbios. Minha prima alegou que estava a mil na tese, não tinha carro e embora tivesse adorado o convite, não poderia àquela altura perder uma boa parte de seu dia de trabalho. Aurora veio de carro buscar a patroa. Levou e trouxe de volta.
        Eu morava numa "chambre de bonne". Como todas, era independente dos apartamentos enormes e suntuosos dos ex-patrões. Pois ali, meio longe dos proprietários, um calor de convivência entre os demais locatários aquecia do frio do 16, por vezes pior que o do inverno parisiense. Lembro-me de Macário, o libanês que estudava contabilidade de dia e trabalhava de noite na sorveteria da Champs Elysée, não longe dali. Lembro de Poli, a chinesa que viera à Paris para cantar. Quando deixei a "chambre", ela ainda não tinha iniciado a carreira de cantora, embora já tivesse sido cantada pelo Macário.
        Muitas histórias entre aqueles estrangeiros feito eu, mas hoje quero lembrar um episódio que envolveu a proprietária da minha "chambre". Ela morava, é claro, num dos apzões dos proprietários. Mais que isso, era proprietária majoritária daquelas "chambres". Morava no 7° andar, na cobertura.
        7 andares portanto separavam-na da minha "chambre" (digo, da "chambre" dela), que ficava no térreo, entre a lixeira e o elevador. Era feriado. Eu lia. Saí entre dois capítulos para jogar o lixo fora. Dei azar: bem na hora, ela chegou com o marido.
        Jogar lixo fora era muito perigoso naquela época. Corria um boato que algum espertinho andava jogando garrafas de vidro na lixeira. No boato corria que era alguém de uma das "chambres". O boato era absolutamente verdadeiro. Alguém jogava os vidros no local inapropriado.
        Era eu.
        Verdade que já estava melhorzinho, já tinha reagido ao boato. Encarava o frio dos corredores e da rua naquele fevereiro para jogar as garrafas maiores no lixão da prefeitura, não longe do imóvel. Mas quando era um vidrinho de maionese ou mostarda (e eu comia muito sanduiche), não tinha boato que me segurasse, eu reincidia.
        O casal espantou-se. Mais talvez porque havia um contraste enorme entre as nossas aparências. Eles vinham de um passeio (no Bois de Boulogne, provavelmente), estavam na maior elegância. Não teria cultura geral para descrevê-la, ela estava entre jóias e um longo vestido. A calça dele era Pierre Cardin e o bleiser algo parecido.
        Eu vinha de ler. Minha memória falha e agora não sabe se meu jogging tinha 4 ou 7 furos. Um era nos fundilhos, pois volta e meia, comendo e lendo na cama, um farelo de sanduiche caía bem ali.
        Cuidei para não me agachar, mas tinha mais e pior. O marido da moça era o síndico, o grande autor dos boatos, o que desconfiava dos vidros dos moradores das "chambres".
        Eu carregava dois sacos. Levei minuto para abrir a lixeira, mas o elevador estava conivente com o boato. Mais um minuto olhando aquela lixeira, e as suspeitas seriam enormes, quase um flagrante, tive de arriscar o primeiro saco. Foi como uma escolha de Sofia, joguei o menorzinho e, Deus meu, deu certo. Nenhum barulho de maionese ou mostarda lá no fundo.
        Mas um saco continuava em minha mão, e boato e elevador continuavam entrelaçados. A lógica me torturava e breve dois vidrinhos fariam o meu calvário. Se o elevador acabava de chegar, a porta foi lenta ao abrir. Traíram-me dois barulhinhos, e tenho certeza que ultrapassaram a porta, que fechou tarde demais.
        Após convocação devidamente assinada, encontramo-nos também no térreo, juntos à casamata do zelador, que preferiu se isentar. Intervalo de mais leituras, eu continuava de jogging. O síndico continuava elegante, mas sem provas limitou-se a uma advertência que - garantiu - estava sendo dada a todos os demais moradores, fossem das "chambres" ou dos apzões.
        Se mais tarde me mudei para o 18, bairro mais quente e sem "chambres", sempre tive a certeza de que não foi por causa de mostarda, maionese ou calças rasgadas.
        Por mais frio que fosse o 16, ali vivi sempre com a sensação de que 200 anos de Revolução Francesa serviram ao menos para tirar as "bonnes" das chambres. E para diminuir a distância entre os seus novos moradores e os antigos proprietários. Na falta de provas — bendita porta que ainda que tarde fechou — um terno bem cortado não podia muito contra um rasgão nos fundilhos.

Celso Gutfreind


 
 

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