FLORES DE FUEGO

O que já passou não existe e teria dificuldades de falar sobre emoções antigas, sairia artificial, seria como contar a vida de alguém que não conheço. Mas a verdade é que assim como Guantanamera poderia ser a música da minha vida, as recordações de Havana - onde estive em outubro do ano passado - continuam fortes e autênticas. O primeiro impacto foi assustador, imensamente assustador. Casarões da época da colônia hispânica em ruínas, movimentos, cheiros, chulos, traficantes de drogas, palácios neo-clássicos degradados, ícones do comunismo cubano. Como se a cidade houvesse sofrido uma guerra terrível e nada fosse reparado, embora já iniciado um processo de recuperação do seu centro histórico financiado pela Unesco. O encanto das cores caribenhas também é evidente. Ano adianta refugiar-se num dos inúmeros, novíssimos e luxuosos hotéis canadenses ou espanhóis e planejar um roteiro de turista tonto. É preciso estar nela, senti-la com paixão como o fez Ernest Hemingway, que viveu 22 anos por lá; afinal o autor de O Velho e o Mar era um esperto, com duradouras passagens por Paris, Miami e Havana, sempre longe do mundinho de vidas ridículas. Firme, enfrentei o sol romântico de outubro, lembrando das notícias da aproximação do Furacão Irene. Aturdido, animado, flutuei pelas ruas desconcertantes, deixando de lado o hotel protegido em Miramar, um bairro onde viviam os ricos antes da revolução, nos tempos do ditador Fulgêncio Baptista. Tudo agitado, tumultuado, num ritmo de uma festa continua e improvisada. Barulho de tambores, acompanhado por cânticos. Sentia-me no Pelourinho.
Espanhóis, alemães e seus guias aborrecidos; ruas estreitas, cobertas de artesanato popular, telas coloridíssimas e músicos afinados cantando salsas - o certo é que a música faz parte da vida de qualquer cubano. Parava para admirar carros norte-americanos - cadillacs, buicks ou bel-airs - ou mulheres vestidas totalmente de branco jogando búzios ou cartas com charutos Gran Corona (os maiores) na boca. Insolente, perguntei a uma delas se podia fotografá-.la. Ela respondeu séria: "Un dólar, ¡muchacho!". Paguei e tirei as fotos desejadas. Atravessei a praça  da catedral barroca, ofereci cordas de violão para um pobre tocador e enchi os olhos de lágrimas quando uma humilde senhora de mais de 80 anos levantou os braços magros, sorriu e eu não conseguia entender o que queria. Aproximei-me e ela me deu um santinho com a frase "Jesús en vos confío". Desviei de um gordo vendedor de flores brancas e frágeis, uma charrete com um velho cavalo  levando um chapéu com fitas vermelhas, um travesti de olhar orgulhoso, bicicletas rápidas pedaladas  por rapazes bonitos. Na varanda de uma casa habitada por inúmeras famílias, toquei num Cristo de  madeira maciça adornado por flores minúsculas e frescas, além de vasos contendo plantas destinadas a fins religiosos. No hotel Ambos Mundos, onde Hemingway viveu na década de 30, tomei dois mojitos - bebida à base de rum, limão, hortelã-pimenta e picante - enquanto a pianista negra e bela tocava um bolero de Nat King Cole. Através da vidraça, vi pessoas de sorriso rasgado ao mesmo tempo apressadas e a passear; o espetáculo de maravilhosos carros dos anos 40 e 50 ziguezagueando entre lentos animais; os ônibus compridos e desconfortáveis cheios demais; os prédios sórdidos e vistosos; putas jovens e sensuais - um museu vivo. Movimentos, cheiros, barulhos.
Nada falta para o estrangeiro atônito: um mar azul-turquesa com manchas de um outro azul, uma história valente, um presente agonizante e aquele ar pouco convincente de felicidade perpétua. Olhei, cheirei, respirei - recordações do Brasil que nos perseguem. Livros de  Chico Buarque e Roberto Drummond numa vitrine. Depois apareceu outra imagem qualquer. O céu explodiu em fogos de artifício, como flores em chamas. Procurei conversar com os nativos. Falaram de como gostam das novelas brasileiras,  mostraram uma fotografia de Regina Duarte no bar-restaurante La Bodeguita del Medio. Só que não é permitido conversar muito tempo com os cubanos, nem fotografar policiais ou fortes militares. Numa luxuosa casa de charutos escolhi dois Cohibas. Acendi um deles no El Floridita, sabendo que fumar habanos é uma fonte de prazer e de bem-estar, e pensando que podia estar sentado na mesma cadeira que um dia Ava Gardner ou Gary Cooper descansaram o rabo.
Tomei uns tantos daiquiris conversando com o barman-chefe vaidoso de suas dezenas de broches na lapela. Percebi imediatamente a noção de coletividade, a ausência de egoísmo. Procurei não enxergar os estúpidos turistas. Lembrei Paul Bowles, "não sou um turista, sou um viajante". Assim também pensa o chileno Luis Sepúlveda, e penso eu. Os turistas são uma espécie de gafanhoto devorando tudo por onde passam. Feitos em série, inexpressivos, numa relação monótona com a vida. Ano há espírito, não há fé. Prefiro estar no meio dos pobres, dos loucos, dos santos, dos poetas, dos  boêmios, dos mentirosos, dos putos. Outra vez o calor e a miséria. Todos queriam dólares. Onde está o desenvolvimento de Cuba? O suor me abraçou como se fosse um monstro pegajoso. O sol fez pontaria  à minha cabeça. Logo anoiteceu e ouvi boleros clássicos no cabaré Dos Gardênias, depois bailando no Palácio de La Rumba. Amanhecendo, curei a ressaca na praia, ao lado de pescadores, com um livro de Carpentier nas mãos, já que Cabrera Infante e Reinaldo Arenas são proibidos. De uma forma tranqüila, vi o que os espanhóis viram há séculos: a sedução inesquecível do desconhecido.

Antonio Júnior
de Barcelona


 
 

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