ANATOMIA DE UM VIAJANTE
Turismo? Não, viagens. Um escritor baiano caminha pelo mundo para captar os costumes e a liberdade do desconhecido
No ano passado, em Edimburgo, pensava em castelos e nevoeiros, nas aventuras de Sir Walter Scott, na infeliz rainha Mary Stuart, em Ewan McGregor nu e na The stony of destiny, a pedra onde os primeiros reis de Escócia eram coroados, simbolizando a união do monarca, da terra e do povo. No entanto, meu principal interesse chamava-se Ness. Parti para a pequena Inverness, procurando imediatamente o próximo transporte para a morada da lendária e gigantesca serpente-dragão marinha.

Fora da temporada turística, o frio penetrante atravessava luvas, gorro e cachecol. O bonachão escocês explicou-me que havia um ônibus às quatro da tarde, e este seguia adiante, ano teria portanto como voltar. "No problem", disse. "Lá não há pousadas", insistiu o simpático homem cheirando a uísque. "No problem", cortei a conversa num inglês limitado. Nas margens do gigantesco lago, preparei o saco de dormi, comi meu sanduíche de pão integral com ervas e legumes, tomando uísque enquanto admirava o nevoeiro ocultando águas sombrias. Como o monstro não surgia, adormeci. Acordei horas depois, assustado com um barulho quebrando o silêncio penetrante. Acendi a lanterna para ver a malvada antes de ser devorado. A luz focou dois estudantes italianos nus, Fabrizio e Ricardo, bêbados, imitando um possível monstro. Rimos bastante, e terminamos bebendo até o amanhecer.

Como na juventude, as recordações de viagem levam-nos a alegrias serenas. Em geral, o ruim é esquecido. Ano há  nada mais enfadonho do que alguém falando de problemas na alfândega, da sujeira das ruas de Roma ou da péssima comida de Londres. Viajar significa contar o visto e vivido, aprender com o desconhecido ou somente fugir da rotina cotidiana? Cada viajante tem a sua arte. Como dizia Paul Bowles e Bruce Chatwin, grandes escritores-viajantes ou vice-versa, "o importante é ser viajante, nunca turista". É que o turismo  vive de folclore e vaidades, destruindo simultaneamente as cidades litorâneas do nordeste brasileiro como as selvas de Costa Rica para construir hotéis, arrecadar muito dinheiro e operar como bálsamo para uma classe  acomodada entediada.

Eu gosto de explorar as cidades de noite e de madrugada. Nunca deixo de ir ao cinema ou ao teatro mesmo que não entenda o idioma. As igrejas e os templos fora da rota turística são indispensáveis, assim como os mercados populares, as zonas sórdidas, os cemitérios, os bares freqüentados por artistas fracassados, os mosteiros, os bosques e os rios. Não se descobre segredos de um mundo  que já está descoberto. Visitar a Torre Eiffell ou o Corcovado é pura redundância que terminará como fotografia num álbum pouco inspirado. Melhor se perder nos jardins de Sintra ou dar graças aos Anjos por estar vivo caminhando no deserto do Saara. É loucura visitar muitos monumentos em poucas horas, gastar rolos de fotografias, ouvir o lenga-lenga de guias. Bom é passear suavemente, sem destino, parar, observar.

É preciso viajar para deixar a cabeça girar e  mudar o cérebro. Primeiro elegendo um destino como se elege um amante. Haverá que intuir, perguntar, ler, arriscar. Conheço muita gente que procura impor a sua forma de férias. Falam de compras fantásticas em Nova York, discos enlouquecidas em Ibiza e hotéis de sonho em Cancúm. Os cruzados da  Idade Média viajavam para salvar a alma e viver aventuras. Os turistas obcecados pelo consumo apenas enganam o vazio de suas existências. Viajar é pedir pouco, não ter medo, apostar no inesperado, compreender que o movimento cura a melancolia. Como dizia Robert Louis Stevenson, outro escritor-viajante, "quando viajo peço somente o céu sob meu corpo e um  caminho para os meus pés".

Pela primeira vez em Londres hospedei-me no apartamento de um velho amigo de infância, um artista, na agradável Wimbledon. Ele preparava jantares perfeitos, dava as dicas das melhores galerias e chamava-me para ver os debates da maravilhosa Germaine Greer na BBC. Não era bem o que queria. Mudei-me para um prédio vitoriano invadido por jovens, sem energia elétrica, aquecimento ou água canalizada, num turbulento bairro de negros e imigrantes: Elephant and Castle. Do meu imenso quarto no último andar, iluminado por velas em candelabros, escrevi diversos poemas e organizei reuniões festivas famosas. Banhava-me em banheiros públicos. Bastante divertido e enriquecedor, e eu só deixei-o quando membros neo-nazi ameaçaram atear fogo no local. Eles haviam queimado uma família de hindus uma semana antes.

Perigos existem, mas o êxito de uma viagem depende principalmente do aprendizado, da paixão, da descoberta e nada disso se encontra em grupos turísticos ou numa loja de souvenirs. Deixo de lado as mordomias dos nossos costumes  burgueses e parto para o desconhecido. Ou seja, viajo sem problemas preconcebidos. O que posso dizer com experiência própria de anos  como viajante, é que minha vida cresceu e minha origem é só uma peça que completa meu quebra-cabeças interior. Entre outras coisas porque minha memória - intelectual, espiritual, erótica - enamorou-se de laranjas chupadas em Fez, de um encontro satânico no parque El Retiro em Madri, de certas identificações com museus e livrarias em Paris, de um barco durante uma estranha madrugada de lua cheia no Morro de São Paulo e em uns divertidos e decadentes antros do Bairro Alto de Lisboa. Tornei-me um sem pátria.

Antonio Júnior
de Barcelona


 
 

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