A  Lisboa  do  poeta  Cesário  Verde  (1855 / 1886)

        Além do Baixo Chiado, Mouraria, largo Martim Muniz, o bairro Estefânia é outro recanto de Lisboa do qual mais guardo recordações e está entre os lugares onde mais estive em meus onze dias lisboetas entre 13 e 28 de Janeiro do ano 2000. E, na Estefânia, estive algumas vezes na praça Cesário Verde, onde se passeia com cães e gatos, onde descansam mendigos e marginais e na qual está o shopping do grupo esotérico Espiral (com livraria, loja de discos, lanchonete, casa de chá ou restaurante). A seguir, cito alguns fragmentos pinçados ao longo da leitura do poema de Cesário Verde, intitulado O sentimento de um ocidental , publicado no livro Portugal, a terra e o homem – Antologia de textos de escritores dos séculos XIX e XX  organizado por  Vitorino Nemésio, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian executada pela Editora Arcádia e impresso na Tipografia Guerra – de Viseu – em 10 de Junho de 1978:

        “Há tal soturnidade, há tal melancolia que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia despertam-me um desejo absurdo de sofrer... As edificações somente emadeiradas: como morcegos, ao cair das badaladas, saltam de viga em viga os mestres carpinteiros... E evoco, então, as crônicas navais: Mouros, baixeis, heróis, tudo ressuscitado!... Tocam-se as grades, nas cadeias. Som que mortifica e deixa umas loucuras mansas!... À vista das prisões, da Sé, das cruzes, chora-me o coração que se enche e que se abisma. Duas igrejas num saudoso largo, lançam  a nódoa negra e fúnebre do clero: nelas esfuma um torvo inquisidor, severo, assim que pela História eu me aventuro e alargo. Na parte que abateu no terramoto, muram-me as construções retas, iguais, crescidas; afrontam-me, no resto, as íngremes subidas, e os sinos de um tanger monástico e devoto. Partem patrulhas de cavalaria dos arcos dos quartéis que já foram conventos na Idade Média!... A pé, outras, a passos lentos, derramam-se por toda a capital, que esfria. Triste cidade!... Eu temo que me avives uma paixão defunta!... E saio. A noite pesa, esmaga. Nos passeios de lajedo arrastam-se as impuras. Ó moles hospitais!... Sai das embocaduras um sopro que arrepia os ombros quase nus. Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso ver círios laterais,  ver filas de capelas, com santos e fiéis, andores, ramos, velas, em uma Catedral de um comprimento imenso. Burguesinhas do catolicismo lembram-me, quando resvalam pelo chão minado por canos, as freiras que, ao chorar dolente dos pianos, quase morriam pelos jejuns que as levavam ao histerismo. Numa padaria exala-se, inda quente, um cheiro salutar e honesto a pão no forno. Não poder pintar a vossa palidez romântica e lunar....  Flocos de pós de arroz pairam sufocadores e em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros. Pede-me sempre esmola um homenzinho calvo, eterno, sem repouso, idoso, meu velho professor nas aulas de Latim!... Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras. Mas se vivemos, os emparedados, sem árvores, no vale escuro das muralhas!...  Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas e os gritos de socorro ouvir estrangulados. Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros, tossem, fumando, sobre as pedras das sacadas. E enorme, nessa massa irregular de prédios sepulcrais, com dimensões de montes, a dor humana busca os amplos horizontes, e tem marés, de fel, como um sinistro mar!... À sombra que faz nos parreirais é que, entre a rama, avistei teu rosto alvo. Tu cortavas os bagos que não prestam com a tua tesoura de bordar. Tua cútis era pétala de leite. Teu pescoço era o caule de uma flor. A impressão de outros tempos, sempre viva, dá estremeções no meu passado morto, e inda viajo, muita vez, absorto, pelas várzeas da minha retentiva. Então recordo a paz familiar, todo um painel pacífico de enganos!... Todos os tipos mortos ressuscito!... Perpetuam-se assim alguns minutos!... E eu exagero os casos diminutos dentro dum véu de lágrimas bendito. Dedos de dama: transparentes bagos!... Tetas de cabra: lácteas carnações!.... Ah! Ninguém entender que ao meu olhar tudo tem certo espírito secreto! Com folhas de saudades um objeto deita raízes duras de arrancar!...

        Será que a quinta frutífera da burguesa família  do baudelaireano Cesário Verde (um dos cenários lisboetas que o inspirou nos trechos  de O sentimento de um Ocidental nos quais se reportou poeticamente às exportações de frutas portuguesas para as cinzentas paisagens industriais inglesas) se estendia pelas amenas colinas da atual Estefânia, bairro lisboeta situado entre as estações Arroios e Saldanha do metrô da capital lusitana? Imagino que sim. Na praça Cesário Verde, bem próximo à escadaria que dá acesso à rua da Ilha Terceira, onde estive hospedado por cinco dias, tomava um sumo de pêssego e saboreava um sanduíche, quando fui abordado, inesperadamente, por estranhos mal vestidos. Fugi apavorado enquanto um casal destes andarilhos tentava me tranqüilizar. Vivia um pânico extra-turístico. Foi em vão a tentativa do bem intencionado casal. Corri. Fui embora. Refugiei-me na lanchonete da Livraria esotérica Espiral e lá aguardei meu amigo Carlos Alberto Pinto. Desde Janeiro de 2000 quis saber mais sobre o poeta Cesário Verde. Além do que nos informa a placa de bronze colocada abaixo do busto do poeta que dava nome àquela simpática pracinha da Estefânia.

        Fernando Pessoa mencionou a obra de Cesário Verde em vários trechos de suas obras, sempre considerando “o mestre que lhe ensinou a poesia dos paquetes no rio das naus e das fragatas”.

        Cesário baudelairezou  a marítima cena lisboeta contrapondo insanidade, morte, paixão, pesadelo, fantasmagorias e saudades ressuscitantes com o ideal de uma vida sã e simples. O comércio lisboeta, sombras e cetins das lojas da cosmopolita capital portuguesa, sendo confrontado com o que o poeta pôde viver na bucólica quinta da sua família, remanescência da Arcádica Olissipona. Impressionante dualidade poética!...

José  Luiz  Dutra  de  Toledo


 
 

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