DE AMSTERDÃ A ATENAS (3 a 30 de maio de 1988)
PRIMEIRA PARTE

Dia 3 — Rio de Janeiro a Amsterdã

    Mortos de medo de que uma frente fria (prevista pela meteorologia) alagasse a Av. Brasil em nosso percurso para o Aeroporto Internacional (e seríamos, então, atacados pelos pivetes, que nos "depenariam" dos "suados" dólares), demos início a nossa oitava grande viagem desde o casamento, que também é a sétima viagem internacional (Paraguai incluído) e quarta para a Europa.
    Em tempo: decolamos sob tempo ensolarado.

Dia 4 — Amsterdã

    Sobre a viagem aérea: estou cansado de saber que, estatisticamente (ou probabilisticamente), há muito mais chances de eu ser vitimado por um assaltante nas ruas cariocas do que por um acidente num avião da KLM; que andar de automóvel, ônibus etc. é muito mais perigoso do que de avião; que medo de andar de avião é irracional, neurótico, sem fundamento (e não estou disposto a pagar analista para descobrir sua causa); li, inclusive, na Seleções, que ter medo de turbulência é tão absurdo como, por exemplo, ter medo do chacoalhar de um carro ao atravessar uma estrada de terra...
    No entanto, não tem gente que ganha na loteria? Probabilisticamente, não é quase impossível?

                                             ·  ·  ·

    Imaginem um turista de país exótico desembarcando no aeroporto do Galeão, indo se hospedar em algum lugar barato, algo fora de mão, na Urca, digamos; feito o check-out, pergunta a um guarda (em inglês): "How can I get to the Center?" O guarda incontinenti responde (em inglês fluente, e sem perguntar se quer vender dólares, ou coisa semelhante): "Take the bus number tal e tal in front of the airport". O turista vai (carregando sua mala), "salta" no Centro e imediatamente toma o outro ônibus para a Urca (ele soube qual é através do guia); pergunta ao motorista (em inglês) onde fica a hospedaria (uma rua pouco conhecida); o motorista lhe informa com relativa precisão onde "saltar" (na verdade, deveria ter "saltado" um ponto depois); aí começa pequeno ziguezague: o turista pergunta a um grupo de rapazes (em inglês), onde fica a tal rua; eles explicam, é naquela direção ali; ele checa com outro transeunte, que lhe indica a direção contrária; de indicação em indicação (algumas contraditórias entre si), acaba entrando numa auto-escola ("lá eles devem conhecer as ruas"), cujo dono consulta um Guia Rex e informa (em inglês), com absoluta precisão, a localização da tal rua!
    Agora transportem a historinha acima para Amsterdã: com algumas adaptações (Urca vira Slotermeer, o ônibus para o centro vira um confortável trem, o segundo ônibus, um bonde), é exatamente o que nos aconteceu na chegada em Amsterdã!

                                            ·  ·  ·

    Uma pequena digressão sobre a sensação de estranheza no primeiro dia em que se está num país estrangeiro (depois, a gente se acostuma): "O que estou fazendo aqui, em plena Leidseplein, cercado de holandeses, cujo linguajar me é tão incompreensível como o grasnar de patos ou o trinar de pássaros? Não seria muito mais natural estar agora em Santa Teresa?" (Aos metafísicos — os materialistas, que saltem estas linhas: não será a viagem de recreio uma espécie de preparação para a futura migração da alma a paragens desconhecidas?)
    Uma confidência: no primeiro dia de uma longa viagem, há momentos em que a gente se arrepende de ter se afastado tanto do país natal (no segundo dia, a gente se adapta; depois do terceiro, não quer mais voltar).
    Estamos, aqui na Holanda, numa sociedade eficiente: por exemplo, trens e bondes seguem rigorosamente os horários (em cada ponto final da Centraal Station, há um letreiro digital indicando o horário de saída do próximo bonde: funciona!). Entretanto, não existe paraíso sobre a Terra (a não ser para alguns marxistas iludidos) e algumas mazelas (em grau reduzidíssimo) fazem-se notar: ao lado da Centraal Station, vi grupo de mendigos, morando na rua, iguaizinhos aos do Rio de Janeiro! Há certa taxa de criminalidade aqui (longe do grau exacerbado do Rio de Janeiro): em alguns lugares públicos, há cartazes, alertando para os pickpockets; no próprio prospecto distribuído aos turistas, recomenda-se "not to carry more money than you need that day", assim como não deixar bolsas ou máquinas fotográficas à vista dentro dos carros estacionados, bem como não esquecer de trancá-los!
    Finalizando: estava comentando com a Fafá: "Lá no Brasil é uma loucura, você tem que trancar o carro, botar corrente, alarma, tranca..." Ironicamente, observei: "Será que é a mesma coisa aqui?" E passei a prestar atenção nos carros estacionados em frente de nosso "hotel" (depois explico as aspas); JURO QUE VI: um dos carros estava com trava na direção, igualzinho no Rio de Janeiro!

                                            ·  ·  ·

    Para os cinéfilos: se meu guia é confiável (Amsterdam this Week), Amsterdã possui 37 cinemas, um para cada 19 mil habitantes. É muito ou pouco?
    Os filmes? Não está passando nenhum filme brasileiro! Em compensação, só está passando um filme holandês: Amsterdamned (não deve existir aqui reserva de mercado). A grosso modo, passam aqui exatamente os mesmos filmes que estavam passando no Rio, ou seja, os que ganharam ou foram indicados para o Oscar: Moonstruck, Broadcast News, Wall Street, The Last Emperor, Fatal Attraction...

                                            ·  ·  ·

    Para os gastrônomos: aqui tem restaurante argelino, americano, argentino, britânico, caribenho, chinês, francês, grego, indiano, indonésio, italiano, japonês, coreano, libanês, mexicano, marroquino, norueguês, paquistanês, russo, tailandês e... Brasileiro. Sim, em nossas andanças, descobrimos um restaurante brasileiro aqui em Amsterdã. O nome? Adivinhem:

( ) IN DE GERSTEKORREL
( ) DE VLIEGENDE SCHOTEL
( ) CANECÃO RIO

    Adivinhou! No menu (bilíngüe), tudo a que um brasileiro perdido em Amsterdã (ou um holandês à procura do exótico) tem direito: vatapá, goiabada, brigadeiro, manjar de coco... A feijoada (preço: 29,50 florins; no Rio de Janeiro sai bem mais em conta) em holandês é (cuidado para não destroncaram a língua) favoriete Braziliaanse stoofschotel van zwarte bonen, geserveerd met farofa, rijst, salade en gesmeden sinaasappel. A caipirinha: tropische cocktail op basis van cachaça en limoentjes geserveerdmet ijs.
    Em frente ao restaurante, conhecemos uma brasileira (que deveria estar estudando inglês em Londres, porém não agüentou a "caretice" dos ingleses), que trabalha (ilegalmente) como garçonete numa casa noturna onde só se toca samba...
    Brasil é exótico: gostemos de nosso país ou não!

                                            ·  ·  ·

    Estou devendo uma explicação às aspas de cinco minutos atrás: na verdade, não estamos formalmente num hotel, mas num quarto de uma casa de família. Aqui na Europa, é muito comum casais ou senhoras viúvas alugarem aposentos de suas casas como "quartos de hotel". O turismo aqui é uma indústria, da qual muitos sobrevivem (enquanto que nós, brasileiros, "exploramos" o turista a ponto de espantá-lo).

Dia 5 — Excursão a Roterdam e Haia

    Com o dinheiro economizado do hotel pela viagem amanhã à noite para Paris (turista de terceiro mundo não é fácil!), fizemos um tour pelas principais cidades da Holanda. (O rapaz que nos vendeu o bilhete perguntou se éramos brasileiros; indaguei como é que ele sabia, e ele nos revelou ter trabalhado um período no restaurante brasileiro, e perfilou algumas palavras em português...)
    Excursão pode parecer coisa "careta" (nas viagens iniciais, preferia fazer todos os passeios "por conta própria"; porém, isso às vezes pode se tornar complicado, e acaba-se perdendo tempo precioso (literalmente falando, dado o colossal investimento em passagens aéreas) em baldeações; um exemplo: para se visitar os campos de tulipas em Keukenhof, toma-se um trem para Haarlem, de lá um ônibus para Lisse, onde um derradeiro ônibus nos conduz ao destino, e vice-versa)... Excursão, dizia, pode parecer programa de turista americano de cinqüenta anos para cima, mas tem suas vantagens: afora a poupança de tempo, permite obter-se uma gama de informações interessantes, não só sobre os locais visitados, como também de âmbito global, inclusive a nível socioeconômico. Querem exemplos? Através de guias de excursões, soube que (aos inimigos da cultura inútil, um pouco de paciência):
 — mais de mil variedades de tulipas são cultivadas na Holanda; — os moinhos de vento tinham dois tipos de utilização: industrial (para moagem) e para drenagem; com a revolução industrial, foram paulatinamente sendo desativados, e os que hoje restam (dez por cento do número original) são tombados;
— o rebanho bovino é de aproximadamente uma cabeça por 2,5 habitantes, o gado de corte ficando confinado, apenas o gado leiteiro permanecendo nos pastos, a não ser no inverno;
— em Amsterdã há uma bicicleta para cada dois habitantes;
— o salário médio holandês situa-se entre 1.800 e 2.000 florins (ao câmbio atual, cerca de mil dólares), os descontos consumindo um terço; o aluguel de um apartamento mediano oscila entre 400 e 600 florins; existem no momento 500 mil desempregados, mas o salário-desemprego é de 1.500 florins por família.

    A excursão que fizemos abrangeu Delft, onde se produz a bonita porcelana pintada de azul (na verdade, a cor original é preta, o azul sendo obtido por reação química); Roterdam, maior porto da Europa, cujo centro, quase todo destruído pela guerra, hoje abriga construções modernas, de linhas arrojadas; Haia, sede do parlamento, dos ministérios, das embaixadas e do palácio da rainha (a capital, porém, é Amsterdã: dá para entender?); Madurodaam, cidade em miniatura, com réplicas dos principais monumentos arquitetônicos da Holanda, do aeroporto de Schiphol, de um balneário, do porto de Roterdam, tudo perfeito, com gentes e bichos de brinquedo, trens elétricos em funcionamento, navios passando por comportas ligando pedaços de mar de diferentes níveis etc.; e o balneário de Sheveningen, com praia de areia branquinha como no Brasil.
    Convenceram-se das vantagens de um tour com guia?
    Uma das curtições do turismo é o estabelecimento de paralelos (uma espécie de antropologia comparada, ouso dizer): por exemplo, entre o frenesi do transporte público carioca (o motorista acelerando ruidosamente, no ponto, para fazer os passageiros entrarem mais rapidamente) e o perfeito sincronismo entre carros e homens, e entre as várias correntes humanas, aqui na Holanda; no bonde: ele pára em todos os pontos, sem que se precise dar sinal; primeiro, descem todas as pessoas que querem descer (por mais numerosas que sejam); a seguir, sobem todas as pessoas que querem subir; concluída, sem nenhum atropelo, a operação, o bonde parte, serenamente... Elementar como o teorema de Pitágoras: só que no Brasil não funciona.
    A Holanda é aquilo que o Brasil da nova república (com minúsculas, de propósito) tenta ser, sem sucesso: uma sociedade ultra-liberal, porém não anárquica. Já na Europa conturbada do século XVII, Descartes encontrou aqui seu refúgio, onde, em suas palavras, "os exércitos existentes parecem ter como única finalidade permitir que os habitantes desfrutem de maneira mais segura as bênçãos da paz". Na década de sessenta, lembram?, Amsterdã transfigurou-se em santuário dos coloridos hippies. O holandês não chega a ser "bitolado" como os demais europeus centrais, a ponto de permitir-se pequenos delitos de trânsito, inimagináveis numa Alemanha: acelerar na passagem do sinal amarelo para o vermelho, estacionar em locais proibidos... Porém, a tensão dispensável, supérflua, das sociedades desorganizadas aqui não existe: em minha permanência, não testemunhei nenhum acidente de trânsito; o transporte público é eficiente e pontual; os balconistas são extremamente corteses, como se cada cliente fosse o primeiro-ministro; pode-se ficar horas sentado num bar com uma só cerveja, sem que o garção fique "em cima"... Por falar em cerveja: ela é mais amarga, mais "encorpada" do que a nossa, além de "subir" mais e não ficar logo quente, por duas razões: o clima aqui é mais frio e a temperatura de consumo da cerveja é mais alta, entre seis e oito graus, ou seja, fria mas não estupidamente gelada. E o mais interessante: tudo isso funciona bem aqui na Holanda, mas não no Brasil. Uma vez, fiz uma experiência, comprando uma Heineken no Brasil. Achei-a demasiado leve, não tão gostosa como a nossa Antarctica; em suma, parece que os fatores climáticos, a temperatura, a umidade...) têm muito a haver com a maneira como se deve tomar a cerveja.

Dia 6 — Amsterdã-Haarlem-Lisse-Amsterdã-fronteira da França-Amsterdã

    De manhã, museu Van Gogh, que reúne em seu acervo grande número de obras do genial pintor, da fase inicial, de quadros soturnos em tons marrons (quem compraria, na época, um desses quadros para enfeitar a parede? Van Gogh não era comercial: chegou a pintar uma caveira fumando; campanha anti-tabagismo?), até as derradeiras obras, de tons berrantes nem sempre lógicas (céu verde), tintas lançadas à tela com exaspero, corvos sobrevoando trigais, árvores retorcidas...
    De tarde, tour à região das tulipas. Sua origem: Turquia. Alguns séculos atrás, raridades, valiosas como gemas preciosas. A partir do século passado, a Holanda passou a cultivá-las, desenvolvendo, através de cruzamentos, variedades de diferentes cores e formas. Hoje, formam um milhar de espécies. Oitenta por cento do comércio internacional de flores é controlado pela Holanda. (Que país fantástico, cuja prosperidade se baseia no comércio de flores; na lapidação de diamantes; numa das melhores linhas aéreas do mundo; numa tecnologia tão prática, que naturalmente passa a fazer parte de nosso dia-a-dia: a velha fita cassete, o disco compacto-digital; em lojas de departamentos presentes nas grandes cidades
do mundo: C&A... A Holanda derruba mitos: de que a afluência capitalista só é possível sob um complexo industrial-militar e uma política imperialista — pelo que me consta, a Holanda não é exportadora de armas, e tampouco mantém bases militares no estrangeiro; de que justiça social, medicina socializada só são concretizáveis sob ditaduras comunistas, etc. e fechemos os parênteses). Para encerrar o assunto, uma questão: qual a diferença entre uma tulipa e uma rosa? A rosa é menor, de uma só cor, as pétalas são delicadas e curvadas para dentro. A tulipa é maior, pode ter mais de uma cor ou diferentes tonalidades da mesma cor, as pétalas são mais abertas e... parecem de matéria plástica!
    Às dez da noite, embarcamos no ônibus que nos levaria a Paris. (O europeu normalmente usa o trem; os ônibus são mais baratos, utilizados por adolescentes e gente sem dinheiro, sendo superdesconfortáveis em relação aos nossos Tribus da Itapemirim.) Às oito da manhã seguinte, desembarcamos exatamente no ponto de embarque. Gastamos cento e dez florins mais vinte e dois dólares e dez horas para nos deslocarmos da Centraal Station de Amsterdã para ela mesma. Alucinação, delírio, loucura? Não, desinformação!
    Você sabia que a França está exigindo visto para a entrada de turistas? Nós também não sabíamos (como também um japonesinho impecavelmente trajado de terno xadrez azul e gravatinha fina, que viajava no nosso ônibus), o que fez com que fôssemos detidos, na fria madrugada, pela polícia de fronteira, e literalmente "deportados" de volta a Amsterdã, além de desembolsarmos 22 dólares adicionais pela "volta" de uma ida que nunca houve, de nada tendo adiantado meu cordial "Bonjour".
    Valeu a diversão: éramos, no ônibus, cinco representantes da língua de Camões; além de nós, na frente, um casal de brasileiros, o marido ex-estudante de medicina em Coimbra e ex-globetrotter, que nos contou anedotas de portugueses (Sabem qual é a melhor universidade do mundo? A de Coimbra. É a única que consegue fazer de um português um doutor!) e episódios de uma viagem ao Marrocos, onde vira mercados de escravas brancas
e termas esfumaçadas por narguilés; atrás de nós, uma portuguesa, que sorrateiramente escutava toda a nossa conversa; e bem no final do ônibus um barbicha com cara de turco, natural de Cabo Verde, que, na máquina automática de bebidas, tantos botões apertou, que acabou tomando uma mistura de café, chá e chocolate.
    Verdadeiro congresso lingüístico. Interessante como termos considerados chulos no Brasil têm acepções bem diversas, carinhosas por vezes, em Portugal. Um brasileiro desinformado, doente em Portugal, reagiu indignado ao lhe prescreverem uma "pica no cu"; "pica", na terrinha, não é pica, mas injeção, e "cu" não é cu, é bunda. Outro quase perdeu os brios ao lhe mandarem pegar "qualquer bicha": "bicha" é fila. Um terceiro ficou desolado, ao ser apresentado a dois rapazotes como "meus putinhos". Puta não é mulher da zona; aliás, zona é o ponto final do autocarro, entenderam?
    E se um português perguntar se o autocarro tem casa de banho, não pensem querer ele tomar um banho dentro de um automóvel: ele quer apenas saber se existe toalete a bordo do ônibus.
    Viajar tem sua magia: os momentos mais adversos têm seus lances divertidos. Foi o caso de nossa "deportação". Retornamos a Amsterdã num ônibus repleto de adolescentes, conduzido por curioso guia, em constante atividade: distribuía passaportes, limpava cinzeiros, fazia preleções. A certa altura, como o padre procurando demover os fiéis do pecado ameaçando-os com os rigores do inferno, pôs-se a admoestar os jovenzinhos, alertando-os dos riscos de tentarem trazer drogas de volta à França. Contou história divertidíssima de um chien na fronteira, ao qual ministraram diferentes drogas, tendo aprendido a detectá-las, escondidas nas bagagens, pelo cheiro.

Dia 7 — Amsterdã

    Após tanta desventura, um sono reparador, e nada mais... A não ser umas cervejinhas, croquetes e batatas fritas com maionese. Estão servidos?

Dia 8 — Amsterdã

    Ao meio-dia deveríamos estar encontrando nossos amigos alemães (que conhecemos, ano retrasado, num pub de Inverness, bêbados, eles e nós) no mirante superior da Tour Eiffel. "Barrados", entretanto, nas portas da França, conseguimos alcançá-los ainda em casa pelo telefone, e nosso final de semana parisiense acabou se metamorfoseando em alguns dias extras em Amsterdã.
    Encontramo-nos ao meio-dia em frente à Centraal Station. Almoçamos juntos, num restaurantezinho simpático, com o teto decorado com bolachas de chope, menu em italiano, francês, alemão e inglês, além de holandês, e música de fita de variadas procedências, inclusive Jorge Bem. Após a sesta, saímos para a noite de Amsterdã. Aliás, um capítulo de destaque nesta encantadora cidade, onde a arte de receber o turista é exercida com perfeição. Há de tudo, para todos os gostos: cassinos, espetáculos eróticos, jantares à bordo de lanchas, pelos canais, rock temperado por haxixe (a legislação referente a drogas aparentemente endureceu: drogas pesadas são rigorosamente proibidas, e não mais existe na entrada de alguns bares o símbolo, que vimos há dois anos, da folhinha da maconha, que indicava ser o consumo de haxixe tolerado no local; porém, os famosos "clubes de drogas", o decadente Paradiso, cujo auge foi na década passada, e a Melkweg, sobrevivem), mas o mais gostoso são os inúmeros bares, confortáveis, decorados em madeira, atapetados... A vida noturna aqui se concentra em dois pólos; atrás da Dam, a barra-pesada: porno-shows, porno-shops, putaria pura e simples (atrás de vitrinas), croquetinhos e batatas fritas sequinhas (o turista menos abonado não morre de fome aqui), e dezenas de mal-encarados oferecendo hashish e cocaine...; e nas imediações da Leidsplein, com seus artistas ambulantes, cafés com mesinhas do lado de fora onde, por uma cerveja, fica-se sentado o tempo que se quer, restaurantes de todos os tipos e os bares com música. No primeiro em que entramos, decorado com motivos náuticos, um barco inteiro pendurado no teto, um cachorro peludo metia-se por baixo das mesas, ou abocanhava bolachas de chope que lhe eram oferecidas, pensando talvez tratarem-se de bolachas. Saudades da caipirinha? Em Amsterdã tem, no Brazilian Music Hall, onde terminamos a noite, tomando Velho Barreiro a cinco florins a dose (mais de dois dólares e meio), ao som ao vivo da boa música brasileira e consolando o barman, rapaz do Realengo, há um ano na Europa, das saudades do Brasil.

Dia 9 — Amsterdã-Volendam-Amsterdã

    Fizemos um passeio automobilístico a Volendam, pitoresca cidadezinha à beira-mar, onde almoçamos um bom bacalhau fresco (a porção estava pequena: de sobremesa, dividimos uma pizza).

Dia 10 — Amstedam-Bruxelas-Sohren

    Quem vem à Europa, vem a Paris, Roma, Londres... A Bruxelas, entretanto, quem é que vem? A meio caminho entre Amsterdã e Paris, poucos se detêm nessa cidade. Todavia, privados da oportunidade de revermos a cidade-luz, resolvemos, como consolo, fazer uma visita à capital belga: mais um país para nosso "repertório".
    Nossa intenção original fora pernoitarmos em Bruxelas, para no dia seguinte rumarmos à Alemanha, ao encontro da titia e Sérgio. No entanto, chovia tão torrencialmente, que acatamos a sugestão de nossos amigos, de permanecermos em Bruxelas apenas algumas horas, antecipando a ida à Alemanha, e pernoitando na casa deles. É claro que, numa visita tão corrida assim, captam-se apenas aspectos superficiais. Bruxelas, se bem que uma cidade imponente, mesclando o tradicional com o moderno, não nos conquistou à primeira vista: falta-lhe vivacidade, parece Suíça.
    Levaram-nos nossos amigos ao Atomium, construção de esferas e tubos, representando um átomo, cujo interior se percorre através de elevador e escadas. Após almoço num restaurante chinês (mais um para nossa coleção!), caminhamos pelo centro: a tradicional peregrinação ao Manneken Pis (estátua de um menininho mijando; no Rio temos parecido o Manequinho) e a visita à Grand Palace, ladeada de construções majestosas folheadas a ouro, como o interior de algumas de nossas igrejas barrocas.
    Sob intenso nevoeiro, entramos na Alemanha (ao contrário da França, nem passaportes nos pediram), com sua rede intrincada de rodovias interligando centenas e centenas de cidadezinhas, relativamente próximas umas das outras, graciosas e limpas como de brinquedo.
    Dormimos em casa de nossos amigos, após só Deus sabe quantos chopes (aqui chama-se pils; tirar uma pils é coisa muito séria: inicialmente, sai com bastante espuma; deixa-se repousar, até a espuma baixar; aí sim, completa-se o copo, e serve-se; a cerveja é purinha, fabricada em moldes tradicionais, sem aditivos químicos ou cereais espúrios.

Dia 11 — Sohren a Konigstein

    Percorremos a belíssima região vinícola às margens do Reno, pontilhada de antigos castelos e cidadezinhas de contos-de-fadas, a caminho de Königstein, ao encontro de meu irmão Sérgio e de nossa tia materna. Visitamos o castelo de Marksburg, em perfeito estado de conservação, por nunca ter sido ocupado pelo inimigo, até a segunda grande guerra, e o monumento de Niederwald, em Rüdesheim, que homenageia as vítimas contra a França em 1870, e que se atinge por um teleférico.
    Sobre a afluência alemã: impressiona, tanto quanto impressiona a miséria da Etiópia; são dos extremos. Na Holanda, ainda se vêem mendigos (pouquíssimos) dormindo na rua, carros (pouquíssimos) estacionados em lugares proibidos e muitos, muitos papéis atirados ao chão. Na Alemanha, contudo, a assepsia é total. Está por nascer o anti-Marx, para escrever o Manifesto Capitalista, tão convincente quanto seu rival. Existem problemas individuais, é claro: maridos corneados, esposas abandonadas, filhos enjeitados; não há sistema possível que venha a eliminar tais mazelas. Por outro lado, o sistema é oneroso, com a ameaça a longo prazo de um colapso: assisti, na televisão, a uma entrevista de um secretário de educação, que alertou para o número cada vez maior de pessoas inativas indiretamente sustentadas pela força-de-trabalho, já que o alemão estuda até os trinta e se aposenta antes dos sessenta. De um pequeno empresário, ouvi o comentário de que o alemão-ocidental está "mal-acostumado", vindo fatalmente a sucumbir a uma eventual crise mais profunda. O que gera tanta afluência? Em grande parte, a eficiência. Tudo aqui funciona, como o mecanismo de um relógio. A educação (todos aqui estudam: para se ser mecânico, carpinteiro, garção, estuda-se alguns anos) e cultura também têm papel preponderante. A cortesia, na Alemanha de hoje, é regra de vida: existe um tom acima do qual ninguém levanta a voz e as crianças são inacreditavelmente quietas (citando o Juca Chaves, como chora criança brasileira!). Uma lição para nós brasileiros: com toda sua educação, afluência e eficiência, os alemães também já viveram (neste século) profunda crise econômica, a mais alta inflação do século e a aventura populista que conduziu a nação ao desastre.

Dia 12 — Passeio a Eppstein

    Os alemães atingiram um grau de relativa igualdade social (igualdade entre aspas: existem as grandes fortunas; afinal, é a perspectiva de fazer fortuna o motor do capitalismo; entretanto, a níveis globais, as disparidades são irrelevantes; todos, da criadora de cavalos de Eppstein, passando pela ex-cozinheira e seu filho marceneiro microempresário, até o advogado de Paderborn, desfrutam de uma renda que permite, além da satisfação das necessidades básicas, a aquisição de bens duráveis, viagens ao exterior e o cultivo de hobbies; creio que, dividindo-se a renda dos 25% mais ricos pela dos 25% mais pobres, o quociente seja muitas vezes inferior do que no Brasil). Os alemães-ocidentais, dizia eu, atingiram um nível de igualdade social que Marx julgaria impossível numa economia capitalista, limitada pelas contradições internas. Acredito que, caso sobrevivamos à corrida armamentista, importantes revisões virão a ser feitas em conceitos hoje amplamente disseminados, como o de Deus, inconsciente e socialismo. O dogma da superioridade do socialismo sobre o capitalismo terá destino idêntico ao do geocentrismo: ruirá, vítima do confronto com a realidade.

                                            ·  ·  ·

    Perguntei a meu irmão (pergunta cretina de turista!) por que, contrariamente ao Brasil, não se vêem na Alemanha carros na beira da estrada com pneu furado: se os pneus aqui são de melhor qualidade, ou se outra causa qualquer. Explicou-me existirem dois jogos de pneus, respectivamente para o verão e para o inverno, e que ao primeiro furo o pneu é trocado por um novo. Aliás, a rede de auto-estradas aqui é algo inimaginável para nós, acostumados a penar por estradas esburacadas, perseguidos por caminhões e espectadores de festivais de acidentes. Com três ou quatro pistas de rolamento em cada mão, as estradas alemãs permitem desenvolver velocidades de 140, 160 km/hora, sem a sensação de tão alta velocidade (só quando se pára num posto de gasolina ou bar à beira da estrada é que se sente como correm os veículos).

                                            ·  ·  ·

    Falei sobre renda (a renda média líquida do alemão é de 2.500 marcos, ou seja, quase 1.500 dólares, mais alta do que a do holandês; porém, de aluguel, pagam-se até mil marcos), Autobahn, e o principal ficou para trás: a visita à casa de meus avôs maternos, em Eppstein. Assim que lá chegamos, fizemos breve visita às ruínas de antigo castelo, no centro da cidade, a cuja torre sobe-se por estreita e escura escada em espiral, não recomendada a claustrófobos. A seguir, rumamos à casa do sr. Roth, nosso cicerone, encontro esse brindado com fina champanha. O sr. Roth é aposentado, ares de cientista maluco, e nos contou orgulhoso ter recentemente visitado a Rússia (revendo lugares onde lutara como soldado) e as Bahamas. Sabia também ter sido a inflação brasileira de 370% no ano passado e, como todo bom alemão, declarou ter os seus hobbies, sendo um deles jogar na bolsa (é por isso que o europeu não envelhece prematuramente). Almoçamos (água na boca!) aspargos frescos com presunto cru da Vestfália, aproveitando a estação. Em caravana, deixamos o centro da cidade, dirigindo-nos ao Hof Häusel, bonito solar onde viveu minha mãe, antes de meus avôs verem-se forçados a emigrarem para o Brasil, e que atualmente é ocupado por uma missão protestante, a WEC (Weltweiter Einsatz für Christus). Os estábulos em frente, que pertenceram a meu avô, ainda existem, praticamente intactos, utilizados por uma senhora divorciada, srª Bauer, que sobrevive cuidando de quinze cavalos já velhos cujos donos têm pena de matá-los. No final da tarde, o tradicional ritual alemão, as tortas com café, preparados pela senhora Roth. No início da noite, estávamos em casa de uma ex-cozinheira de meus avôs, numa cidadezinha próxima, cujo filho, formado em marcenaria, dono de pequena empresa, coleciona antigüidades, freqüentando leilões em diferentes países, sendo sua residência verdadeiro museu.

Dia 13 — Königstein

    Percorremos quase todas as alamedas dentro do parque desta aprazível estância hidromineral (até parece que estou mandando cartão-postal de São Lourenço), visitando ao final as ruínas de um castelo, no alto de uma colina. (Nota: recebemos, no hotel, prospecto com pequena planta da cidade, indicando os vários passeios no parque, com a duração de cada um, se contêm trechos íngremes ou não, u.s.w.; cada percurso é representado, na planta, por uma cor. O que é a organização alemã: nos próprios caminhos, plaquetas coloridas, pregadas em árvores, indicam de que trajeto se trata; aqui ninguém se perde no mato!)

Dia 14 — Königstein-Paderborn

    Vocês sabiam que meu bisavô materno era, em 1913, a 21ª fortuna da região da Vestfália? Eu também não sabia, mas está na edição de anteontem do Paderborner Zeitung. Para assistirmos à inauguração do Padersteinweg, que homenageia Emil Paderstein, eminente cidadão de Paderborn, fundador do banco local (depois incorporado ao Deutsche Bank) e vereador (Ratsherr) responsável por muitos melhoramentos, reunimo-nos, seus descendentes, aqui em Paderborn, a convite da prefeitura local.
    Passamos primeiro pelo aeroporto de Frankfurt (imenso: de 8 às 9, contei quase 70 chegadas), para aguardar Ilse Jonson (neta de Emil) e sua filha Susan Bunting, dos Estados Unidos.
    Em Paderborn, fomos recepcionados pelos srs. Auffenberg pai e filho (o primeiro, bom soldado nazista, conforme atesta antiga fotografia, pendurada na parede, quase perdida entre dezenas de gravuras e fotos, e infinidade de livros e revistas, até do século passado). Os alemães, de tão meticulosos, exatos, organizados, acabam sendo engraçados quando defrontados com uma condição inesperada: em linguagem de computação, diz-se que entram em loop. Foi o caso quando chegamos, Sérgio, eu e respectivas esposas, sem a titia e os parentes americanos, que estavam vindo em carro separado: parecia a fábula do velho, o menino e o burro; ora o velho cavalgava o burro, ora o menino, ora ambos, ora nenhum! Os Auffenberg pai e filho não sabiam o que fazer: se ficavam conosco no escritório, aguardando titia e as americanas; se Auffenberg pai levava Auffenberg filho a um compromisso, deixando-nos sós esperando titia; se nos levavam à hospedaria, para depois cuidarem da titia...
    Almoçamos bons aspargos (está na época), visitamos a cidade e, à noite, tomamos Paderborner Bier com comidinhas, que ninguém é de ferro (niemand ist aus Eisen, ao pé da letra)!

Dia 15 — Paderborn

    Hoje de manhã inaugurou-se o Padersteinweg ("caminho de Paderstein", alameda ao longo do rio Pader, no parque Heinz-Nixdorf). Discursaram o prefeito, Ilse Jonson e titia. Maiores detalhes, no Paderborner Zeitung do dia seguinte: é só encomendar!
    Após lauto almoço, patrocinado pela prefeitura (não é só no Brasil que tem boca-livre! Oh, os deliciosos aspargos, com salmão defumado: nunca os esquecerei!), fomos conduzidos a um passeio nos arredores da cidade.
    À noite, reunião em casa do sr. Auffenberg filho: defrontado com as três gerações sentadas, em círculo, no jardim, a conversação corrente como água, tortas de morango e de framboesa arrancando elogios dos convivas e sorrisos orgulhosos da dona da casa (um dos temas da conversação: qual a diferença entre as prendas do lar no Brasil e na Alemanha?), pensei, com uma ponta de ciúme: "é outra civilização!", para depois me consolar: "tão eficiente, a ponto de exterminar sistematicamente mais de dez por cento de seus cidadãos sem que ninguém se desse conta".

Dia 16 — Paderborn-Munique

    As comemorações em Paderborn continuaram, porém Fátima e eu decidimos seguir viagem: afinal, temos muito pela frente.
    Às sete e quarenta da manhã, pegamos o trem que nos deixou em Munique, com alguns minutos de atraso (na Alemanha?). Nosso dilema (estamos ficando organizados como os alemães): para a Grécia, de avião (com alguma tarifa especial, um stand-by), ônibus (reconhecidamente mais barato, porém um "saco") ou de trem (confortável, porém "caríssimo", nas palavras de qualquer europeu)? E mais: se de trem, via Itália, com direito a dezoito horas de barco de Brindisi a Patras, ou via Iugoslávia, com a aporrinhação de ter de tirar visto?
    Nas imediações da Hauptbahnhof de Munique, existe uma área freqüentada por turcos (no Brasil, os imigrantes vêm para enriquecer; na Alemanha, compõem a mão-de-obra barata): porno-shops, lojas de aparelhos eletrônicos vagabundos, pequenos restaurantes de culinária grega ou turca, hotéis de poucas estrelas, pensões... Ficamos numa a 66 marcos o casal, sem o café, e com a ducha extra a 4 marcos. Precisamos economizar, para não chegarmos pobres na Grécia!

Dia 17 — Saída de Munique, com destino a Atenas

    O avião, caro demais; o ônibus, não suficientemente barato a ponto de compensar tamanho desconforto; optamos pelo trem: sai diariamente às 21:38 (saiu com quatro minutos de atraso; será que a Alemanha não é mais a mesma?), chegando em Atenas dois dias depois, às 14:26. Depois desta, só mesmo a Transiberiana!
    Tiramos visto no consulado iugoslavo, caminhamos um pouco pelo centro de Munique, visitamos a tia Wally (fez 94 anos no último domingo; irmã de meu avô paterno, sobreviveu ao nazismo escondida, na própria Alemanha, por famílias cristãs) e fizemos provisões para a longa viagem ferroviária no Hertie.
    Após fazermos hora na estação, regada a queijos e... cerveja, embarcamos.

Ivo Korytowski


 
 
 
 

« Voltar