DE AMSTERDÃ A ATENAS (3 a 30 de maio de 1988)
SEGUNDA PARTE
 
Dia 18 — Atravessando a Iugoslávia
 
    O nazismo é fenômeno relativamente recente: algozes e vítimas ainda sobrevivem, algumas. O nazismo é o estigma alemão: não se consegue pensar na Alemanha dissociada do nazismo. Algumas questões podem ser levantadas: primeira, foi o nazismo fenômeno tipicamente alemão, ou poderia ter acontecido em outro país? Segunda, como é possível que ocorresse exatamente num país de tão alto nível cultural, berço de Bach, Beethoven e
Goethe? Terceira, a população como um todo consentiu no extermínio? Em outras palavras, havia anti-semitismo generalizado, nos mesmos termos em que existe hoje racismo, em certas regiões do Brasil?
    Não cabe a mim dar resposta a tais questões: escrevo mero diário de viagem, não um ensaio histórico. Entretanto, é difícil o viajante judeu na Alemanha não se entreter com algumas dessas perplexidades. Posso relatar alguns testemunhos: da tia Wally e de um austríaco ex-marinheiro, criança no tempo de Hitler, admirador de Israel, cujo sogro é nazista até hoje, que conhecemos no trem. Quanto à terceira questão, ambos concordam no seguinte ponto: a população alemã, globalmente falando, gostava dos judeus; segundo a tia Wally, os médicos judeus eram os mais procurados, tendo Hitler tido dificuldades em fazer cumprir a proibição de cristãos se tratarem com eles; diz ela ainda ter havido alemães que, arriscando ser presos, esconderam judeus, fato ocorrido pessoalmente com ela. Também o austríaco afirmou peremptoriamente não ter existido sentimento anti-judaico no sentido em que existe o racismo atual. Aí questionei: se não, como explicar o extermínio em grande escala de tantos cidadãos alemães? Resposta dele (sou mero narrador de fatos, longe de mim querer levantar polêmica): havia censura, e a população não tinha conhecimento do que estava acontecendo com os judeus. E mais: os nazistas remanescentes estão convencidos de o holocausto nunca ter ocorrido, não passando de propaganda americana, segundo eles. No entanto, existem provas de ter acontecido, entre elas o próprio campo de Dachau, que pode ser visitado.
    Em suma: por mais que se aprofunde o estudo do fenômeno nazista na Alemanha, talvez nunca venha-se a compreender como foi possível povo tão culto, cortês e refinado ter descambado a tamanho nível de barbárie.
    E chega de Alemanha, que já estamos na Iugoslávia! Vista através das janelas do trem, as impressões são: em contraste com a Alemanha, de pobreza. Grande porção do campo é cultivado: nunca vi país com tamanha proporção de terra arada. No entanto, não se trata da agricultura ultramecanizada dos países capitalistas avançados, mas intensiva em mão-de-obra, muitas vezes velhas senhoras de roupa e capuz negros, provavelmente ainda os mesmos trajes usados pelos antepassados medievais. Os tratores não têm a imponência dos Massey-Fergusson, e são poucos. Chegamos a ver um instrumento até no Brasil superado: arado puxado a boi. Muitas casas são semi-acabadas, com tijolos expostos. As pequenas cidades têm aspecto desleixado, com sujeira nas ruas, gramados não aparados (atenção: contrastamos a Iugoslávia com a Alemanha: daí o rigor). Quando à capital, Belgrado, a história é outra: não é a cristalização de outra era, como Ouro Preto ou Amsterdã; tampouco, superposição de camadas históricas, como Roma ou Atenas: Belgrado é moderna. De longe, lembra um pouco Brasília: amplos espaços, largas avenidas, arquitetura futurista. Gozado: como Brasília tem cada de comunismo!
    Cara de comunismo? Comunismo tem cara? Planejamento e burocracia: características comuns a Brasília e países comunistas. O que têm os países comunistas, para serem tão diferentes dos países capitalistas, em seu aspecto exterior, e tão "piores"? (A essa altura, estrilará o militante do P.C.: como piores, se neles não há putas nem Aids — quão moralistas os comunistas de hoje! — nem mendigos, nem toxicômanos, nem famintos etc. etc. etc.? Acontece que o conceito não é particular meu: em conversas informais a bordo de trens com cidadãos ordinários de países comunistas europeus, especificamente Hungria e Iugoslávia, tenho notado "sentimento de inferioridade" em relação à Europa capitalista: desprezo à língua russa, compulsoriamente ensinada, como "inútil", frustração com os bens de consumo produzidos, crítica ao sistema ditatorial de governo etc.) Recapitulando: o que faz países comunistas terem a "cara" que têm? Primeiro, os automóveis são diferentes (fabricados na Rússia, Polônia, Alemanha Oriental), pequenininhos, como alguns italianos, ou "quadradões". Perguntei a um iugoslavo se são de boa qualidade; resposta: têm boa máquina e duram até cinqüenta anos (!), mas o design é ruim. Segundo, os materiais são padronizados, por exemplo, as persianas das casas. Terceiro, os artefatos são rudimentares, parecendo por vezes "de brinquedo": cancelas, bombas de gasolina, tratores... Porém, o que faz realmente uma cidade comunista parecer tão diferente das cidades capitalistas (levei tempo para "sacar" isto) é a ausência de publicidade: a parafernália de outdoors, letreiros de bares anunciando cervejas, propaganda onipresente, nos pontos de ônibus, nas cestas de lixo, nos relógios digitais, profusão de anúncios luminosos, os milhares de pequenos estabelecimentos comerciais, como vitrinas agindo como isca para o freguês... Somente uma viagem a uma nação comunista faz-nos perceber a que ponto a propaganda tomou conta de nossa paisagem urbana, sua ausência chegando a ferir nosso senso estético! Mas chega de divagação!
 
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    Atravessar de trem a Europa: experiência de vida toda peculiar! Numa única viagem de trem, estamos percorrendo quatro países, atravessando três fronteiras, num total de duas noites, um dia e metade de outro dia... Verdadeira maratona ferroviária, repleta de experiências fascinantes. Na noite em que saímos de Munique e, atravessando trecho da Áustria, penetramos na Iugoslávia, éramos, Fátima e eu, os únicos na cabine, o que nos permitiu esticarmos o corpo e dormirmos "quase como em casa" (só que, em casa, não há guardas de fronteira pedindo, de madrugada, o passaporte); às nove e pouco da manhã seguinte, acabou o conforto: ganhamos companheiros. A convivência entre seis viajantes, de quatro países diferentes, unidas pelo destino, por um dia de suas vidas, na mesma cabine de trem, foi uma grata experiência: um húngaro caladão, cuja única manifestação de existência foi um peido soltado na calada da noite; dois iugoslavos, arranhando o inglês (na escola, aprende-se aqui russo, inglês e, conforme a região, um terceiro idioma; o russo parece não ser benquisto: "aprender russo, para quê? visitar Rússia, Romênia, Bulgária? fazer o quê, nesses países?"), a caminho de Salônica, para comprarem vestuário ("lá tem maior sortimento"); um britânico, fotógrafo profissional, seguidor de estranha seita, "School of Economic Science", que prega a submissão a pretensa lei universal (aqui, dou aos marxistas pitada de razão: o papel da religião tem sido a pregação sistemática da submissão). À noite, tivemos "forró" no trem: cantador, de sanfona na mão, entoava, em troca de algumas moedas, canções folclóricas marcando o ritmo com batidas de sola no chão. O vinho de mesa francês, o mais barato que consegui encontrar entre dezenas de marcas francesas, italianas, alemãs, portuguesas, etc., rolou. Pouco a pouco, todos foram se acomodando da melhor maneira possível, no aperto geral, e adormecendo. No meio da noite, todos fomos acordados: controle de passaportes na saída da Iugoslávia, controle de divisas, controle de passaportes na entrada da Grécia, controle das passagens... Às cinco da manhã, mais ou menos, Salônica: todos saltaram, o inglês, para pegar o trem a Istambul, os iugoslavos, para suas compras, o húngaro, sabe lá Deus para quê... De manhã, mal acordáramos, recebemos novos companheiros, dessa vez gregos: uma passageira recém-embarcada, que pensava ser Garcia Marquez brasileiro, com a qual fiz um pacto, de ler uma obra de autor grego, e ela leria obra de autor brasileiro, Jorge Amado, possivelmente; e um que já vinha no trem desde a Alemanha, em outra cabine, onde trabalhara seis meses no restaurante da irmã.
    Às duas e meia da tarde, cansadíssimos, chegamos. Tão cansados que mal tivemos forças para sair para jantar. E, no entanto, jantamos duplamente: primeiramente, num restaurante indicado pelo guia; nitidamente comercial, não nos agradou; frustrados, fomos à forra: próximos do hotel, entramos numa taberna e jantamos pela segunda vez.
 
Dia 20 — Atenas
 
    Mais de uma pessoa nos advertira para não perdermos mais de um dia com Atenas, e passarmos o máximo de tempo nas ilhas. De fato, afora os sítios arqueológicos, Atenas é uma cidade moderna (mais ou menos como Roma); porém, tem seus encantos, e dá vontade de ficar mais uns dias por lá.
    O supra-sumo do turismo na Grécia é fazer cruzeiro às ilhas. Sai caro: 400 dólares um cruzeiro de final de semana, e nosso tempo disponível é bem superior. Não nos deixamos deslumbrar pelo romantismo do navio e (seguindo dica de um amigo) optamos pelo mais prático: por 140 dólares, compramos bilhete das linhas aéreas gregas (Olympic Airways) Atenas-Rodes-Creta-Atenas.
    Descendo-se a avenida principal de Atenas, em direção ao centro, divisa-se, ao longe, no alto de uma colina, a Acrópole. Resolvidos os problemas de câmbio e compra de passagens aéreas, tomamos o seu rumo, caminho natural do turista recém-chegado em Atenas. A Acrópole reúne as ruínas de várias edificações do período clássico, destacando-se o Partenon (templo de Atena, deusa da sabedoria). Aliás, quase dois anos antes, já havíamos sido apresentados, em Londres, a pedaços do Partenon. Há três séculos, ainda se podia admirar o Partenon inteiro. Com a decadência da civilização clássica, ele foi adaptado em igreja cristã. A partir da ocupação turca, porém, a Acrópole (estrategicamente situada) passou a ser usada como posto militar: o Partenon, depósito de munições, foi atingido por bala de canhão veneziano em 1687 e destruído, vindo a ser parcialmente restaurado no século passado. No século XVIII, fragmentos das frisas foram levados por lorde Elgin à Inglaterra, compondo até hoje o acervo do British Museum.
 
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    Almoço em Plaka, bairro antigo (da época da independência grega, no século passado), atualmente área de turismo, repleta de bazares, tabernas e casas noturnas. Esquivamo-nos de restaurantes com aspecto mais sofisticado, e acabamos atraídos (na Grécia, muitos restaurantes mantém um dos garçons à porta, convidando transeuntes a entrar) por taberna de aspecto simples, mesas ao ar livre, ocupado pela população turista jovem. Escolhemos os pratos com aspecto mais apetitoso, exibidos em panelões: folhas de parreira recheadas (prato comum aqui; no Brasil, costumam ser servidas em restaurantes árabes), ensopado de polvo e salada grega (tomate, pepinos, queijo de cabra, temperos e muito azeite). O conceito de "comida típica", aliás, permite uma série de observações. Por exemplo, existe uma cozinha chinesa quase que universal: já comemos porco agridoce na Grécia, Bélgica, Escócia, Inglaterra, Bolívia...; o molho é basicamente o mesmo. No entanto, visitantes da China me relataram ser a comida lá completamente diferente, horrorosa por sinal. Por outro lado, já tivemos várias surpresas com a comida dita árabe: no Egito, por exemplo, não a encontramos; já a comida grega, contém muitos dos elementos associados à "comida árabe": os legumes recheados, composição de saladas com tomates, pepinos e cebolas, a "coalhada árabe", os espetinhos de carne (kababs, no Brasil, kaftas)... e a própria bebida nacional grega, o ouzo, não passa de um arak, bebida supostamente árabe. Pergunta: como bebida árabe, se os árabes não bebem? Por outro lado, apesar de aqui raramente comer-se arroz, "arroz à grega" não é invenção de restaurante brasileiro: às vezes peixe ou carne são servidos com pequena porção de arroz, duro como o da paella, com pedacinhos de verduras e passas. E para terminar: quem souber onde comer quibes fora do Brasil, que nos avise!
 
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    Despertado o apetite de meus leitores, vamos ao resto do dia: após o almoço e café para reanimar (outro mito que gostaria de contestar: de que o café consumido no Brasil é "lixo", o bom sendo exportado; em nenhum país do mundo existe café tão gostoso como o do botequim da gare da Central do Brasil), voltamos à Acrópole, para o espetáculo do pôr-do-sol. Já noite, atravessamos mais uma vez o Plaka, até a praça Syntagma, onde pegamos o trolley para nosso hotel.
    Dois pequenos incidentes: em Plaka, abordou-nos, em português, proprietário ou funcionário de um bazar, cidadão grego nascido no Egito, que emigrara para o Brasil, onde tem filhos já criados, tendo retornado recentemente à Grécia porque, em suas palavras contundentes, agressivas até, "no Brasil depois dos quarenta anos é-se impedido de trabalhar". Na volta ao hotel, sem saber o preço exato do trolley, separei nota de cem dracmas (coincidentemente, o dracma vale mais ou menos o que valia o cruzado, no oficial, quando partimos), prevendo pagar a passagem e receber eventual troco; dentro do veículo é que observei não trabalharem os transportes públicos com troco: o passageiro já entra com a quantia exata em moedas, depositando-as numa urna. O preço por cabeça era 30 dracmas, porém, em moedas, só tinha cinqüenta. O motorista foi compreensivo: deu-nos desconto de dez.
 
Dia 21 — Atenas a Rodes
 
    Pegamos o vôo das cinco e quinze da madrugada para a ilha de Rodes (nas cotas da Turquia, a um passo — de gigante — de Chipre e dois de Israel). Foi o único vôo em que ainda encontramos lugar. Tamanho era nosso sono, que nem deu para sentir medo do vôo.
    Para compensar a espelunca de Atenas, procuramos hotel mais ou menos sofisticado, próximo à praia, no qual demos prosseguimento a nosso sono, prematuramente interrompido.
    Ao acordarmos, tivemos uma surpresa: nas palavras de Fafá, Rodes é uma cidade linda, limpa e toda florida. Verdadeiro paraíso dos escandinavos. Já no aeroporto, observáramos a quantidade de vôos procedentes de nações escandinavas e da Europa central. O turismo aqui é uma atividade econômica que ocupa muita gente: nunca imaginei deparar com infra-estrutura turística tão completa, nos melhores padrões europeus, ruas e ruas repletas de restaurantes, pubs, bares, todos primorosamente decorados, num cenário quase-tropical, mar de um azul de sonho, clima deliciosamente ensolarado. Existem duas Rodes: externamente às antigas muralhas, a cidade moderna, cosmopolita, praiana; em seu interior, praticamente a cidade do tempo das Cruzadas, com acréscimos turcos: um transporte no tempo! Na Antiguidade, Rodes foi importante entreposto comercial, abrigando o famoso colosso, uma das sete maravilhas do mundo antigo; na Idade Média, serviu de cabeça-de-ponte para as incursões dos Cruzados à Palestina; em 1522, caiu sob domínio turco, até ser ocupada pela Itália fascista em 1912. Somente após a Segunda Grande Guerra é que passou a integrar o moderno estado grego.
    As praias não chegam aos pés das brasileiras: compõem-se de espécie de cascalho acinzentado. Entretanto, nada mais distante do burburinho de nossas praias, os vendedores apregoando com estridência as mercadorias, cachorros e crianças irrequietas salpicando de areia os banhistas, a cerveja e cachaça "rolando soltas"... Aqui reina a contenção européia: os freqüentadores se restringem a tomar banho de sol sobre as espreguiçadeiras que fazem parte da praia, sem maiores efusões; no mar sem ondas, predominam pedalinhos; por toda a orla, chuveiros, para o banho pós-praia. Grande parte das mulheres prescindem do sutiã, peça anacrônica para os nórdicos sedentos de sol. Em compensação, não existe a exibição de superdimensionadas bundas, matéria em que somos campeões, sim senhor!
 
Dia 22 — Passeio a Lindos
 
    Fizemos passeio a Lindos, pequena aldeia litorânea de casas todas branquinhas, a uns 60 km de Rodes, com sua imponente acrópole sobre rochedo escarpado que mergulha no mar. Vejam as fotografias.
 
Dia 23 — Rodes a Iraklion
 
    Último passeio em Rodes: acrópole do monte Smith, com o antigo teatro e estádio; nosso adeus à cidade medieval. Irish coffee na cidade moderna. E o avião para Iraklion, principal cidade de Creta.
 
Dia 24 — Iraklion
 
    De manhã, fizemos tour para Cnossos, onde, durante trinta anos, sir Evans escavou o antigo palácio, sede da civilização minóica, a mais antiga civilização européia, contemporânea da civilização egípcia, o tour terminou no museu arqueológico, que reúne afrescos, jóias, sinetes, inscrições, jarros etc. das antigas civilizações, encontrados em Creta. Uma observação de nossa guia: enquanto que no palácio de Versalhes, apesar de imenso, não existe um único banheiro, o palácio de Cnossos tinha banheiro com banheira e... água corrente!
 
Dia 25 — Iraklion
 
    Manhã de muito vento e poeira: foi-se o sol. Iraklion não é balneário, como Rodes. No entanto, parece haver aqui mais turistas do que habitantes, não obstante a cidade em si não ter beleza nenhuma. Não só as escavações arqueológicas atraem hordas, como Iraklion é importante porto de escala entre Atenas e Alexandria, no Egito, Limassol, em Chipre, e Haifa em Israel. Que estranho impulso traz número tão elevado de peregrinos aos palcos de civilizações arcaicas, tão distantes do cotidiano? Não se darão conta que o contacto com o que restou de civilizações há tanto tempo mortas vem apenas realçar nossa fragilidade e fatuidade? Esconder-se-á, por trás destas vagas turísticas, sentimento semelhante ao que move o muçulmano a Meca e o cristão a Roma?
    Não obstante a poeira a penetrar por todos os poros, fizemos pequeno passeio à zona do porto, onde se ergue antigo forte veneziano, de pedra, aberto à visitação. (Milhares de pessoas despenderam milhões de horas lapidando imensos blocos de pedra e encaixando-as umas sobre as outras, formando imensas muralhas, castelos, fortes, que, com a introdução da pólvora na Europa, tornaram-se, como que por passe de mágica, inteiramente obsoletos...) Após uma "pita" que me custou uma diarréia (tentarei descrever a pita: espécie de pão árabe ensopado no azeite, enrolado em forma de casquinha de sorvete, recheado com fatias de carne de porco, assada num imenso espeto giratório, tomate, especiarias, batatas fritas...), descansamos à tarde no hotel, para à noite tomarmos ouzo com carne de carneiro na região do mercado, ouvindo (sem entender patavina) bem-humorados gregos de espessos bigodes a tagarelar... pitoresco, não?
    A impressão que estamos tendo dos gregos é a melhor possível: ouvi de alguém ser a Grécia um país pobre de povo rico (o Brasil, coitado, é país rico de povo pobre)... Talvez o turismo tenha algo a haver com isso: é tão intenso, a ponto de fazer da Grécia imenso "parque de diversões". Em nenhum outro país, vi tamanha quantidade de tavernas, bares, restaurantes... tem-se a impressão de que um de cada dois gregos sobrevive disso. O grego tem o aspecto vigoroso, não usa roupas rotas ou rasgadas (chamaram-me a atenção, sob esse aspecto, grupo de pescadores, em Rodes, muito bem trajados, com suas calças compridas de material impermeável, assim como mendigo — aparição rara! — na boca da rua Dédalo, trajando paletó impecável — só faltou a gravata!) e parece feliz. Costumo medir o grau de equilíbrio de um povo pelo consumo de bebidas alcoólicas: em algumas regiões do interior do Brasil chega a ser assustador, por exemplo; aqui aparenta ser baixo.
    Sobre o grego (a língua): assim como surpreende chegar em Israel e ouvir o hebraico, língua associada aos livros de reza e à sinagoga, na boca de putas, açougueiros, motoristas de caminhão..., igualmente causa certo estupor ouvir a língua dos filósofos (modernizada), o alfabeto zelosamente estudado no curso de Filosofia, usados no dia-a-dia. Outra descoberta interessante: a expressão "isso para mim é grego", denotando algo incompreensível, não é pertinente (o Ricardo já me chamara a atenção para isso). Há muito mais semelhanças entre o grego e o português do que sonha nossa vã filosofia (muitos termos das línguas latinas e anglo-saxônicas compõem-se de radicais gregos). Alguns exemplos: t a b e r n a (taberna), k a j e t e r i a (kafeteria), qh l e j w n o n (telefonou), k r o n a s a n (krouasan)... Entenderam? (A última palavra é "croissant")
 
Dia 26 — Iraklion-Mykonos, digo, Iraklion-Atenas
 
    Mykonos, escrevi acima? Era nossa intenção. Porém, quando vimos o caixote voador, cruzamento de helicóptero com os aviões militares usados pelos americanos na invasão da Normandia, desistimos. Teleférico sem fio? Não!
    À noite, refeitos do susto, voamos para Atenas: num 737!
 
Dia 27 — Atenas a Mykonos
 
    Apesar de termos ido dormir a uma da madrugada, pedimos para nos acordarem às seis, e lá fomos nós, em jejum, de metrô, para o Pireu, a fim de pegarmos o navio das oito para Mykonos.
    Mykonos é uma cidadezinha diferente de qualquer outra. Em primeiro lugar, vive exclusivamente de turismo. Lá quase não há as coisas normais vistas nas outras cidades: tinturarias, oficinas mecânicas, escritórios de contabilidade... só há hotéis, hospedarias, quartos para alugar, motocicletas para alugar, lojas de souvenirs, tavernas... a arquitetura é sui generis: parece cidade de escultura. As casas parecem moldadas no alabastro: normalmente sobrados, menores do que as casas "normais" com que estamos habituados, branquinhas, branquinhas, de ferir a vista, por serem revestidas de cal, arestas arqueadas, sobressaindo-se janelas e portas de cores vivas, azuis, verdes, contrastando com o branco. As ruelas, estreitíssimas, cobertas de pedras com faixas de cal pintadas sobre elas, formando estranhos quadriláteros, chegando a lembrar cenários de alguns filmes expressionistas. A placidez é interrompida, por vezes, pela zoeira de pequenos triciclos motorizados. Nas fachadas frontais das casas, íngremes escadas brancas, algumas com vasos de flores sobre os degraus, conduzem ao pavimento superior; algumas moradias têm grinaldas dependuradas, normalmente de flores, contendo porém por vezes réstias de alho ou cebola.
    Após o almoço, fomos à procura de abrigo: hospedamo-nos, a preço módico, num quarto de casa particular, usada como pensão. Dadas as peculiaridades da cidade, cujas ruas formam literais labirintos, tomamos a precaução de gravarmos algumas coordenadas, que nos facilitassem, mais tarde, a volta ao local de pouso. Anotamos o nome do bar defronte à casa: Anargyros. Providencial ação: havia navios ao largo e, à noite, a cidade foi tomada de assalto por hostes de turistas. No meio a tanta gente, por casas e ruas tão semelhantes umas às outras (e depois, naturalmente, de uma garrafa de vinho), tivemos dificuldade em reconstituirmos o caminho de casa. Salvou-nos um letreiro sobre uma seta: Anargyros.
 
Dia 28 — Mykonos a Atenas
 
    De manhã, incursão fotográfica por Mykonos, procurando fixar seus aspectos característicos. Não escaparam as nossas fotos alguns personagens típicos daqui: os gatos, os burricos de venda de hortaliças e (last but not least) Petros. Petros é o pelicano de estimação de Mykonos, figura de cartões postais, amado pelas crianças, as quais assusta abrindo seu bico imenso, quando por elas importunado. Solto na praça principal, Petros é uma graça: anda de lá para cá, sempre perseguido por algum fotógrafo, mete-se entre os stands de cartões postais, circula pelas mesas dos bares. Petros figura nos álbuns fotográficos de milhões de turistas que visitaram Mykonos: sob certo aspecto, é mais famoso do que a rainha da Inglaterra.
    À tarde, voltamos de navio para Atenas.
 
Dia 29 — Atenas
 
    Último passeio por Atenas: mercado de pulgas, Plaka (onde compramos estatuetas de alabastro e os dois quadrinhos que enfeitam nossa sala), imediações da Acrópole. Último almoço grego. Último jantar: na saída do restaurante próximo ao hotel que nos acostumamos a freqüentar, fomos saudados por toda a equipe (como num filme), do cozinheiro ao caixa, passando pelo gerente. Que gente simpática, os gregos!
 
Dia 30 — Atenas-Amsterdã-Rio
 
    Mortos de saudades do nosso lar, sorridentes embarcamos no avião da KLM para Amsterdã, onde conectamos com o vôo para o Rio. Após quase um mês sem notícias do Brasil, eis que ele dá os primeiros sinais de vida. No International Herald Tribune, distribuído no vôo, a notícia de que a inflação brasileira em maio foi de 17,8%.

Ivo Korytowski


 
 
 
 

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