DE AMSTERDÃ A ATENAS (3 a 30 de maio de 1988)
SEGUNDA PARTE
Dia 18 — Atravessando a Iugoslávia
O nazismo é fenômeno relativamente
recente: algozes e vítimas ainda sobrevivem, algumas. O nazismo
é o estigma alemão: não se consegue pensar na Alemanha
dissociada do nazismo. Algumas questões podem ser levantadas: primeira,
foi o nazismo fenômeno tipicamente alemão, ou poderia ter
acontecido em outro país? Segunda, como é possível
que ocorresse exatamente num país de tão alto nível
cultural, berço de Bach, Beethoven e
Goethe? Terceira, a população como um todo consentiu
no extermínio? Em outras palavras, havia anti-semitismo generalizado,
nos mesmos termos em que existe hoje racismo, em certas regiões
do Brasil?
Não cabe a mim dar resposta a tais questões:
escrevo mero diário de viagem, não um ensaio histórico.
Entretanto, é difícil o viajante judeu na Alemanha não
se entreter com algumas dessas perplexidades. Posso relatar alguns testemunhos:
da tia Wally e de um austríaco ex-marinheiro, criança no
tempo de Hitler, admirador de Israel, cujo sogro é nazista até
hoje, que conhecemos no trem. Quanto à terceira questão,
ambos concordam no seguinte ponto: a população alemã,
globalmente falando, gostava dos judeus; segundo a tia Wally, os médicos
judeus eram os mais procurados, tendo Hitler tido dificuldades em fazer
cumprir a proibição de cristãos se tratarem com eles;
diz ela ainda ter havido alemães que, arriscando ser presos, esconderam
judeus, fato ocorrido pessoalmente com ela. Também o austríaco
afirmou peremptoriamente não ter existido sentimento anti-judaico
no sentido em que existe o racismo atual. Aí questionei: se não,
como explicar o extermínio em grande escala de tantos cidadãos
alemães? Resposta dele (sou mero narrador de fatos, longe de mim
querer levantar polêmica): havia censura, e a população
não tinha conhecimento do que estava acontecendo com os judeus.
E mais: os nazistas remanescentes estão convencidos de o holocausto
nunca ter ocorrido, não passando de propaganda americana, segundo
eles. No entanto, existem provas de ter acontecido, entre elas o próprio
campo de Dachau, que pode ser visitado.
Em suma: por mais que se aprofunde o estudo do fenômeno
nazista na Alemanha, talvez nunca venha-se a compreender como foi possível
povo tão culto, cortês e refinado ter descambado a tamanho
nível de barbárie.
E chega de Alemanha, que já estamos na Iugoslávia!
Vista através das janelas do trem, as impressões são:
em contraste com a Alemanha, de pobreza. Grande porção do
campo é cultivado: nunca vi país com tamanha proporção
de terra arada. No entanto, não se trata da agricultura ultramecanizada
dos países capitalistas avançados, mas intensiva em mão-de-obra,
muitas vezes velhas senhoras de roupa e capuz negros, provavelmente ainda
os mesmos trajes usados pelos antepassados medievais. Os tratores não
têm a imponência dos Massey-Fergusson, e são poucos.
Chegamos a ver um instrumento até no Brasil superado: arado puxado
a boi. Muitas casas são semi-acabadas, com tijolos expostos. As
pequenas cidades têm aspecto desleixado, com sujeira nas ruas, gramados
não aparados (atenção: contrastamos a Iugoslávia
com a Alemanha: daí o rigor). Quando à capital, Belgrado,
a história é outra: não é a cristalização
de outra era, como Ouro Preto ou Amsterdã; tampouco, superposição
de camadas históricas, como Roma ou Atenas: Belgrado é moderna.
De longe, lembra um pouco Brasília: amplos espaços, largas
avenidas, arquitetura futurista. Gozado: como Brasília tem cada
de comunismo!
Cara de comunismo? Comunismo tem cara? Planejamento
e burocracia: características comuns a Brasília e países
comunistas. O que têm os países comunistas, para serem tão
diferentes dos países capitalistas, em seu aspecto exterior, e tão
"piores"? (A essa altura, estrilará o militante do P.C.: como piores,
se neles não há putas nem Aids — quão moralistas os
comunistas de hoje! — nem mendigos, nem toxicômanos, nem famintos
etc. etc. etc.? Acontece que o conceito não é particular
meu: em conversas informais a bordo de trens com cidadãos ordinários
de países comunistas europeus, especificamente Hungria e Iugoslávia,
tenho notado "sentimento de inferioridade" em relação à
Europa capitalista: desprezo à língua russa, compulsoriamente
ensinada, como "inútil", frustração com os bens de
consumo produzidos, crítica ao sistema ditatorial de governo etc.)
Recapitulando: o que faz países comunistas terem a "cara" que têm?
Primeiro, os automóveis são diferentes (fabricados na Rússia,
Polônia, Alemanha Oriental), pequenininhos, como alguns italianos,
ou "quadradões". Perguntei a um iugoslavo se são de boa qualidade;
resposta: têm boa máquina e duram até cinqüenta
anos (!), mas o design é ruim. Segundo, os materiais são
padronizados, por exemplo, as persianas das casas. Terceiro, os artefatos
são rudimentares, parecendo por vezes "de brinquedo": cancelas,
bombas de gasolina, tratores... Porém, o que faz realmente uma cidade
comunista parecer tão diferente das cidades capitalistas (levei
tempo para "sacar" isto) é a ausência de publicidade: a parafernália
de outdoors, letreiros de bares anunciando cervejas, propaganda onipresente,
nos pontos de ônibus, nas cestas de lixo, nos relógios digitais,
profusão de anúncios luminosos, os milhares de pequenos estabelecimentos
comerciais, como vitrinas agindo como isca para o freguês... Somente
uma viagem a uma nação comunista faz-nos perceber a que ponto
a propaganda tomou conta de nossa paisagem urbana, sua ausência chegando
a ferir nosso senso estético! Mas chega de divagação!
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Atravessar de trem a Europa: experiência de
vida toda peculiar! Numa única viagem de trem, estamos percorrendo
quatro países, atravessando três fronteiras, num total de
duas noites, um dia e metade de outro dia... Verdadeira maratona ferroviária,
repleta de experiências fascinantes. Na noite em que saímos
de Munique e, atravessando trecho da Áustria, penetramos na Iugoslávia,
éramos, Fátima e eu, os únicos na cabine, o que nos
permitiu esticarmos o corpo e dormirmos "quase como em casa" (só
que, em casa, não há guardas de fronteira pedindo, de madrugada,
o passaporte); às nove e pouco da manhã seguinte, acabou
o conforto: ganhamos companheiros. A convivência entre seis viajantes,
de quatro países diferentes, unidas pelo destino, por um dia de
suas vidas, na mesma cabine de trem, foi uma grata experiência: um
húngaro caladão, cuja única manifestação
de existência foi um peido soltado na calada da noite; dois iugoslavos,
arranhando o inglês (na escola, aprende-se aqui russo, inglês
e, conforme a região, um terceiro idioma; o russo parece não
ser benquisto: "aprender russo, para quê? visitar Rússia,
Romênia, Bulgária? fazer o quê, nesses países?"),
a caminho de Salônica, para comprarem vestuário ("lá
tem maior sortimento"); um britânico, fotógrafo profissional,
seguidor de estranha seita, "School of Economic Science", que prega a submissão
a pretensa lei universal (aqui, dou aos marxistas pitada de razão:
o papel da religião tem sido a pregação sistemática
da submissão). À noite, tivemos "forró" no trem: cantador,
de sanfona na mão, entoava, em troca de algumas moedas, canções
folclóricas marcando o ritmo com batidas de sola no chão.
O vinho de mesa francês, o mais barato que consegui encontrar entre
dezenas de marcas francesas, italianas, alemãs, portuguesas, etc.,
rolou. Pouco a pouco, todos foram se acomodando da melhor maneira possível,
no aperto geral, e adormecendo. No meio da noite, todos fomos acordados:
controle de passaportes na saída da Iugoslávia, controle
de divisas, controle de passaportes na entrada da Grécia, controle
das passagens... Às cinco da manhã, mais ou menos, Salônica:
todos saltaram, o inglês, para pegar o trem a Istambul, os iugoslavos,
para suas compras, o húngaro, sabe lá Deus para quê...
De manhã, mal acordáramos, recebemos novos companheiros,
dessa vez gregos: uma passageira recém-embarcada, que pensava ser
Garcia Marquez brasileiro, com a qual fiz um pacto, de ler uma obra de
autor grego, e ela leria obra de autor brasileiro, Jorge Amado, possivelmente;
e um que já vinha no trem desde a Alemanha, em outra cabine, onde
trabalhara seis meses no restaurante da irmã.
Às duas e meia da tarde, cansadíssimos,
chegamos. Tão cansados que mal tivemos forças para sair para
jantar. E, no entanto, jantamos duplamente: primeiramente, num restaurante
indicado pelo guia; nitidamente comercial, não nos agradou; frustrados,
fomos à forra: próximos do hotel, entramos numa taberna e
jantamos pela segunda vez.
Dia 20 — Atenas
Mais de uma pessoa nos advertira para não
perdermos mais de um dia com Atenas, e passarmos o máximo de tempo
nas ilhas. De fato, afora os sítios arqueológicos, Atenas
é uma cidade moderna (mais ou menos como Roma); porém, tem
seus encantos, e dá vontade de ficar mais uns dias por lá.
O supra-sumo do turismo na Grécia é
fazer cruzeiro às ilhas. Sai caro: 400 dólares um cruzeiro
de final de semana, e nosso tempo disponível é bem superior.
Não nos deixamos deslumbrar pelo romantismo do navio e (seguindo
dica de um amigo) optamos pelo mais prático: por 140 dólares,
compramos bilhete das linhas aéreas gregas (Olympic Airways) Atenas-Rodes-Creta-Atenas.
Descendo-se a avenida principal de Atenas, em direção
ao centro, divisa-se, ao longe, no alto de uma colina, a Acrópole.
Resolvidos os problemas de câmbio e compra de passagens aéreas,
tomamos o seu rumo, caminho natural do turista recém-chegado em
Atenas. A Acrópole reúne as ruínas de várias
edificações do período clássico, destacando-se
o Partenon (templo de Atena, deusa da sabedoria). Aliás, quase dois
anos antes, já havíamos sido apresentados, em Londres, a
pedaços do Partenon. Há três séculos, ainda
se podia admirar o Partenon inteiro. Com a decadência da civilização
clássica, ele foi adaptado em igreja cristã. A partir da
ocupação turca, porém, a Acrópole (estrategicamente
situada) passou a ser usada como posto militar: o Partenon, depósito
de munições, foi atingido por bala de canhão veneziano
em 1687 e destruído, vindo a ser parcialmente restaurado no século
passado. No século XVIII, fragmentos das frisas foram levados por
lorde Elgin à Inglaterra, compondo até hoje o acervo do British
Museum.
· · ·
Almoço em Plaka, bairro antigo (da época
da independência grega, no século passado), atualmente área
de turismo, repleta de bazares, tabernas e casas noturnas. Esquivamo-nos
de restaurantes com aspecto mais sofisticado, e acabamos atraídos
(na Grécia, muitos restaurantes mantém um dos garçons
à porta, convidando transeuntes a entrar) por taberna de aspecto
simples, mesas ao ar livre, ocupado pela população turista
jovem. Escolhemos os pratos com aspecto mais apetitoso, exibidos em panelões:
folhas de parreira recheadas (prato comum aqui; no Brasil, costumam ser
servidas em restaurantes árabes), ensopado de polvo e salada grega
(tomate, pepinos, queijo de cabra, temperos e muito azeite). O conceito
de "comida típica", aliás, permite uma série de observações.
Por exemplo, existe uma cozinha chinesa quase que universal: já
comemos porco agridoce na Grécia, Bélgica, Escócia,
Inglaterra, Bolívia...; o molho é basicamente o mesmo. No
entanto, visitantes da China me relataram ser a comida lá completamente
diferente, horrorosa por sinal. Por outro lado, já tivemos várias
surpresas com a comida dita árabe: no Egito, por exemplo, não
a encontramos; já a comida grega, contém muitos dos elementos
associados à "comida árabe": os legumes recheados, composição
de saladas com tomates, pepinos e cebolas, a "coalhada árabe", os
espetinhos de carne (kababs, no Brasil, kaftas)... e a própria bebida
nacional grega, o ouzo, não passa de um arak, bebida supostamente
árabe. Pergunta: como bebida árabe, se os árabes não
bebem? Por outro lado, apesar de aqui raramente comer-se arroz, "arroz
à grega" não é invenção de restaurante
brasileiro: às vezes peixe ou carne são servidos com pequena
porção de arroz, duro como o da paella, com pedacinhos de
verduras e passas. E para terminar: quem souber onde comer quibes fora
do Brasil, que nos avise!
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Despertado o apetite de meus leitores, vamos ao
resto do dia: após o almoço e café para reanimar (outro
mito que gostaria de contestar: de que o café consumido no Brasil
é "lixo", o bom sendo exportado; em nenhum país do mundo
existe café tão gostoso como o do botequim da gare da Central
do Brasil), voltamos à Acrópole, para o espetáculo
do pôr-do-sol. Já noite, atravessamos mais uma vez o Plaka,
até a praça Syntagma, onde pegamos o trolley para nosso hotel.
Dois pequenos incidentes: em Plaka, abordou-nos,
em português, proprietário ou funcionário de um bazar,
cidadão grego nascido no Egito, que emigrara para o Brasil, onde
tem filhos já criados, tendo retornado recentemente à Grécia
porque, em suas palavras contundentes, agressivas até, "no Brasil
depois dos quarenta anos é-se impedido de trabalhar". Na volta ao
hotel, sem saber o preço exato do trolley, separei nota de cem dracmas
(coincidentemente, o dracma vale mais ou menos o que valia o cruzado, no
oficial, quando partimos), prevendo pagar a passagem e receber eventual
troco; dentro do veículo é que observei não trabalharem
os transportes públicos com troco: o passageiro já entra
com a quantia exata em moedas, depositando-as numa urna. O preço
por cabeça era 30 dracmas, porém, em moedas, só tinha
cinqüenta. O motorista foi compreensivo: deu-nos desconto de dez.
Dia 21 — Atenas a Rodes
Pegamos o vôo das cinco e quinze da madrugada
para a ilha de Rodes (nas cotas da Turquia, a um passo — de gigante — de
Chipre e dois de Israel). Foi o único vôo em que ainda encontramos
lugar. Tamanho era nosso sono, que nem deu para sentir medo do vôo.
Para compensar a espelunca de Atenas, procuramos
hotel mais ou menos sofisticado, próximo à praia, no qual
demos prosseguimento a nosso sono, prematuramente interrompido.
Ao acordarmos, tivemos uma surpresa: nas palavras
de Fafá, Rodes é uma cidade linda, limpa e toda florida.
Verdadeiro paraíso dos escandinavos. Já no aeroporto, observáramos
a quantidade de vôos procedentes de nações escandinavas
e da Europa central. O turismo aqui é uma atividade econômica
que ocupa muita gente: nunca imaginei deparar com infra-estrutura turística
tão completa, nos melhores padrões europeus, ruas e ruas
repletas de restaurantes, pubs, bares, todos primorosamente decorados,
num cenário quase-tropical, mar de um azul de sonho, clima deliciosamente
ensolarado. Existem duas Rodes: externamente às antigas muralhas,
a cidade moderna, cosmopolita, praiana; em seu interior, praticamente a
cidade do tempo das Cruzadas, com acréscimos turcos: um transporte
no tempo! Na Antiguidade, Rodes foi importante entreposto comercial, abrigando
o famoso colosso, uma das sete maravilhas do mundo antigo; na Idade Média,
serviu de cabeça-de-ponte para as incursões dos Cruzados
à Palestina; em 1522, caiu sob domínio turco, até
ser ocupada pela Itália fascista em 1912. Somente após a
Segunda Grande Guerra é que passou a integrar o moderno estado grego.
As praias não chegam aos pés das brasileiras:
compõem-se de espécie de cascalho acinzentado. Entretanto,
nada mais distante do burburinho de nossas praias, os vendedores apregoando
com estridência as mercadorias, cachorros e crianças irrequietas
salpicando de areia os banhistas, a cerveja e cachaça "rolando soltas"...
Aqui reina a contenção européia: os freqüentadores
se restringem a tomar banho de sol sobre as espreguiçadeiras que
fazem parte da praia, sem maiores efusões; no mar sem ondas, predominam
pedalinhos; por toda a orla, chuveiros, para o banho pós-praia.
Grande parte das mulheres prescindem do sutiã, peça anacrônica
para os nórdicos sedentos de sol. Em compensação,
não existe a exibição de superdimensionadas bundas,
matéria em que somos campeões, sim senhor!
Dia 22 — Passeio a Lindos
Fizemos passeio a Lindos, pequena aldeia litorânea
de casas todas branquinhas, a uns 60 km de Rodes, com sua imponente acrópole
sobre rochedo escarpado que mergulha no mar. Vejam as fotografias.
Dia 23 — Rodes a Iraklion
Último passeio em Rodes: acrópole
do monte Smith, com o antigo teatro e estádio; nosso adeus à
cidade medieval. Irish coffee na cidade moderna. E o avião para
Iraklion, principal cidade de Creta.
Dia 24 — Iraklion
De manhã, fizemos tour para Cnossos, onde,
durante trinta anos, sir Evans escavou o antigo palácio, sede da
civilização minóica, a mais antiga civilização
européia, contemporânea da civilização egípcia,
o tour terminou no museu arqueológico, que reúne afrescos,
jóias, sinetes, inscrições, jarros etc. das antigas
civilizações, encontrados em Creta. Uma observação
de nossa guia: enquanto que no palácio de Versalhes, apesar de imenso,
não existe um único banheiro, o palácio de Cnossos
tinha banheiro com banheira e... água corrente!
Dia 25 — Iraklion
Manhã de muito vento e poeira: foi-se o sol.
Iraklion não é balneário, como Rodes. No entanto,
parece haver aqui mais turistas do que habitantes, não obstante
a cidade em si não ter beleza nenhuma. Não só as escavações
arqueológicas atraem hordas, como Iraklion é importante porto
de escala entre Atenas e Alexandria, no Egito, Limassol, em Chipre, e Haifa
em Israel. Que estranho impulso traz número tão elevado de
peregrinos aos palcos de civilizações arcaicas, tão
distantes do cotidiano? Não se darão conta que o contacto
com o que restou de civilizações há tanto tempo mortas
vem apenas realçar nossa fragilidade e fatuidade? Esconder-se-á,
por trás destas vagas turísticas, sentimento semelhante ao
que move o muçulmano a Meca e o cristão a Roma?
Não obstante a poeira a penetrar por todos
os poros, fizemos pequeno passeio à zona do porto, onde se ergue
antigo forte veneziano, de pedra, aberto à visitação.
(Milhares de pessoas despenderam milhões de horas lapidando imensos
blocos de pedra e encaixando-as umas sobre as outras, formando imensas
muralhas, castelos, fortes, que, com a introdução da pólvora
na Europa, tornaram-se, como que por passe de mágica, inteiramente
obsoletos...) Após uma "pita" que me custou uma diarréia
(tentarei descrever a pita: espécie de pão árabe ensopado
no azeite, enrolado em forma de casquinha de sorvete, recheado com fatias
de carne de porco, assada num imenso espeto giratório, tomate, especiarias,
batatas fritas...), descansamos à tarde no hotel, para à
noite tomarmos ouzo com carne de carneiro na região do mercado,
ouvindo (sem entender patavina) bem-humorados gregos de espessos bigodes
a tagarelar... pitoresco, não?
A impressão que estamos tendo dos gregos
é a melhor possível: ouvi de alguém ser a Grécia
um país pobre de povo rico (o Brasil, coitado, é país
rico de povo pobre)... Talvez o turismo tenha algo a haver com isso: é
tão intenso, a ponto de fazer da Grécia imenso "parque de
diversões". Em nenhum outro país, vi tamanha quantidade de
tavernas, bares, restaurantes... tem-se a impressão de que um de
cada dois gregos sobrevive disso. O grego tem o aspecto vigoroso, não
usa roupas rotas ou rasgadas (chamaram-me a atenção, sob
esse aspecto, grupo de pescadores, em Rodes, muito bem trajados, com suas
calças compridas de material impermeável, assim como mendigo
— aparição rara! — na boca da rua Dédalo, trajando
paletó impecável — só faltou a gravata!) e parece
feliz. Costumo medir o grau de equilíbrio de um povo pelo consumo
de bebidas alcoólicas: em algumas regiões do interior do
Brasil chega a ser assustador, por exemplo; aqui aparenta ser baixo.
Sobre o grego (a língua): assim como surpreende
chegar em Israel e ouvir o hebraico, língua associada aos livros
de reza e à sinagoga, na boca de putas, açougueiros, motoristas
de caminhão..., igualmente causa certo estupor ouvir a língua
dos filósofos (modernizada), o alfabeto zelosamente estudado no
curso de Filosofia, usados no dia-a-dia. Outra descoberta interessante:
a expressão "isso para mim é grego", denotando algo incompreensível,
não é pertinente (o Ricardo já me chamara a atenção
para isso). Há muito mais semelhanças entre o grego e o português
do que sonha nossa vã filosofia (muitos termos das línguas
latinas e anglo-saxônicas compõem-se de radicais gregos).
Alguns exemplos: t a b e r n a (taberna), k a j e t e r i a (kafeteria),
qh l e j w n o n (telefonou), k r o n a s a n (krouasan)... Entenderam?
(A última palavra é "croissant")
Dia 26 — Iraklion-Mykonos, digo, Iraklion-Atenas
Mykonos, escrevi acima? Era nossa intenção.
Porém, quando vimos o caixote voador, cruzamento de helicóptero
com os aviões militares usados pelos americanos na invasão
da Normandia, desistimos. Teleférico sem fio? Não!
À noite, refeitos do susto, voamos para Atenas:
num 737!
Dia 27 — Atenas a Mykonos
Apesar de termos ido dormir a uma da madrugada,
pedimos para nos acordarem às seis, e lá fomos nós,
em jejum, de metrô, para o Pireu, a fim de pegarmos o navio das oito
para Mykonos.
Mykonos é uma cidadezinha diferente de qualquer
outra. Em primeiro lugar, vive exclusivamente de turismo. Lá quase
não há as coisas normais vistas nas outras cidades: tinturarias,
oficinas mecânicas, escritórios de contabilidade... só
há hotéis, hospedarias, quartos para alugar, motocicletas
para alugar, lojas de souvenirs, tavernas... a arquitetura é sui
generis: parece cidade de escultura. As casas parecem moldadas no alabastro:
normalmente sobrados, menores do que as casas "normais" com que estamos
habituados, branquinhas, branquinhas, de ferir a vista, por serem revestidas
de cal, arestas arqueadas, sobressaindo-se janelas e portas de cores vivas,
azuis, verdes, contrastando com o branco. As ruelas, estreitíssimas,
cobertas de pedras com faixas de cal pintadas sobre elas, formando estranhos
quadriláteros, chegando a lembrar cenários de alguns filmes
expressionistas. A placidez é interrompida, por vezes, pela zoeira
de pequenos triciclos motorizados. Nas fachadas frontais das casas, íngremes
escadas brancas, algumas com vasos de flores sobre os degraus, conduzem
ao pavimento superior; algumas moradias têm grinaldas dependuradas,
normalmente de flores, contendo porém por vezes réstias de
alho ou cebola.
Após o almoço, fomos à procura
de abrigo: hospedamo-nos, a preço módico, num quarto de casa
particular, usada como pensão. Dadas as peculiaridades da cidade,
cujas ruas formam literais labirintos, tomamos a precaução
de gravarmos algumas coordenadas, que nos facilitassem, mais tarde, a volta
ao local de pouso. Anotamos o nome do bar defronte à casa: Anargyros.
Providencial ação: havia navios ao largo e, à noite,
a cidade foi tomada de assalto por hostes de turistas. No meio a tanta
gente, por casas e ruas tão semelhantes umas às outras (e
depois, naturalmente, de uma garrafa de vinho), tivemos dificuldade em
reconstituirmos o caminho de casa. Salvou-nos um letreiro sobre uma seta:
Anargyros.
Dia 28 — Mykonos a Atenas
De manhã, incursão fotográfica
por Mykonos, procurando fixar seus aspectos característicos. Não
escaparam as nossas fotos alguns personagens típicos daqui: os gatos,
os burricos de venda de hortaliças e (last but not least) Petros.
Petros é o pelicano de estimação de Mykonos, figura
de cartões postais, amado pelas crianças, as quais assusta
abrindo seu bico imenso, quando por elas importunado. Solto na praça
principal, Petros é uma graça: anda de lá para cá,
sempre perseguido por algum fotógrafo, mete-se entre os stands de
cartões postais, circula pelas mesas dos bares. Petros figura nos
álbuns fotográficos de milhões de turistas que visitaram
Mykonos: sob certo aspecto, é mais famoso do que a rainha da Inglaterra.
À tarde, voltamos de navio para Atenas.
Dia 29 — Atenas
Último passeio por Atenas: mercado de pulgas,
Plaka (onde compramos estatuetas de alabastro e os dois quadrinhos que
enfeitam nossa sala), imediações da Acrópole. Último
almoço grego. Último jantar: na saída do restaurante
próximo ao hotel que nos acostumamos a freqüentar, fomos saudados
por toda a equipe (como num filme), do cozinheiro ao caixa, passando pelo
gerente. Que gente simpática, os gregos!
Dia 30 — Atenas-Amsterdã-Rio
Mortos de saudades do nosso lar, sorridentes embarcamos
no avião da KLM para Amsterdã, onde conectamos com o vôo
para o Rio. Após quase um mês sem notícias do Brasil,
eis que ele dá os primeiros sinais de vida. No International Herald
Tribune, distribuído no vôo, a notícia de que a inflação
brasileira em maio foi de 17,8%.
Ivo Korytowski
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