GREGAS LEMBRANÇAS
 
                    1960. Éramos um grupo de estudantes latino-americanos e africanos, representando na  Europa organizações estudantis cristãs de nossos  países. Já participáramos, com estudantes de todo o mundo,  da grande Conferência de Strasbourg, promovida pela World Student Christian Federation (WSCF). Os anglo-saxões estranharam tanta alegria e... rebeldia.  Coitada da concierge do alojamento universitário– como entender  que moças às escondidas coassem café improvisadamente em lenços, dentro de seus quartos, e ali o dividissem com visitantes rapazes?!!! A arrogância juvenil  e  a extroversão que nos é própria  eram alimentadas pela então certeza de que participávamos da escrita de uma nova história em nossos países - nossa geração construiria uma nova civilização no hemisfério sul.  Não ria o leitor: quase 20 países africanos conquistaram sua independência neste ano... Enquanto ali estávamos, os USA cortaram a cota de açúcar de Cuba mas seu povo respondia com o “sin cuota pero sin amo”. Em nosso cone sul, o sonho revolucionário germinava. Em Paris, jovens louras desfilavam com africanos  e os franceses, sofrendo então a guerra da Argélia, nos cortejavam e se sentiam, orgulhosamente, latinos... O futuro era nosso.
                    A maioria de nós, viajando desde Milão na segunda classe de um arremedo de Orient Express, seguia para a Grécia.  Para nós, brasileiros, depois de termos visto da janela  do trem todo o verde da então Iugoslávia,  o choque inicial  foi também a primeira identificação: não fossem as oliveiras, nos sentiríamos no agreste nordestino, pois até os carrões americanos, que não víramos na Europa de então, circulavam pelas estreitas estradas.
                    Destino inicial: Atenas. Deslumbramento e sentir-se em casa. Subir, sentir, respirar Acrópoles, as colunas dóricas do Partenon (tão suavemente  inclinadas a partir do meio que se encontrariam a dezenas de quilômetros da base), assistir a um concerto no Teatro de Dionísio (Bethoven, Brahms, Kalomiris!) tendo abaixo o azul do Egeu e, acima, uma coberta de estrelas, com todas as bênçãos dos deuses do Olimpo.  Emoção demais para a jovem brasileira de origem humilde. E tão grandes quanto aquelas, garimpar cerâmicas no mercado, examinar afrescos, descobrir a arte bizantina e...  encontrar kafeneías com letreiros iluminados, em português: CAFÉ DO BRASIL. Ali, orgulhosamente saboreávamos nossa  Coffea tipo exportação com o melhor sabor europeu – o grego. Sabor este duplo – ao saberem que haviam brasileiros no alegre grupo, queriam nos conhecer e tocar... Calor humano (também).
                    De Atenas para Tessalônica. De ônibus. Estradas estreitas. Serra. Paisagens bíblicas. Sempre as oliveiras. A anfitriã era a Igreja Ortodoxa Grega mas o local, um colégio americano onde o já esperado cardápio era docemente amenizado com o iogurte, o mel e o azeite gregos.  Bem localizado – vista total da pequena e bela cidade, já com importante papel turístico,  e do marzão azul.  Ali participaríamos de uma reunião de Comitê Geral da WSCF. A babel de idiomas não impedia o relacionamento fraternal, do lavatório  às sessões de trabalho. E, sim, às atividades culturais...  Entre estas, a visita a uma aldeia grega.
                    De ônibus, chegamos à aldeia em apenas 10 minutos. Sensação incrível de haver, mesmo em 1960, entrado na máquina do tempo.  Ali, o trigo era plantado, o moinho o beneficiava e o pão era feito. Ovelhas e ovelhas... Lã beneficiada, teares manuais na porta das casas, aldeãs eternamente viúvas tecendo, geralmente, uma grande quantidade  do que viria a ser sua vestimenta, da família e... o dote das meninas quando casassem. Somos recebidos na igreja, que, como toda ortodoxa, não tem bancos. Os aldeões vêm atrás, surpresos e curiosos como quaisquer camponeses, e com eles ovelhas, gado, cachorros... Todos participamos da cerimônia.  Ao sair,  aquele povo simples, cerimonioso e tímido, de repente descobre que, entre aquela “gente do mundo todo”, há brasileiros.  A jovem carioca, vestida de modo a espelhar ideologia e clima da época   (em sua saia azul, uma gloriosa palmeira pintada), ouve um grito : brasilía!!!!! E o povo a cerca,  toca-lhe para verificar se real era,  e descobre em seu braço uma pulserinha  cheia de grãos de café. Pedem permissão e... vão arrancando, para guardar de lembrança, grão a grão daquele café-do-Brasil!  Agora acreditavam que aquele país-do-futuro, para onde mandaram tantos de seus filhos, realmente existia e carregavam consigo um pedaço dele!
                    Depois de ter sambado vestida de baiana (que trabalho dera  carregar anáguas desde São Paulo até lá!!!) e ter cantado Cielito Lindo  com os latino-americanos  na Festa das Delegações,  eu entro emocionada na roda de dança que então começava no centro da aldeia. Não sou mais apenas uma brasileira. Sou um Zorba-de-saias. Sou Atenas,  Afrodite, Ártemis, Hera, Deméter: Mulher. Universal. Reencontrando o sentido do humano e do belo ali mesmo, onde nossa civilização e a democracia começaram. Para sempre irmanada àquele povo tão clássico quanto simples.
                    Hoje, quarenta anos depois, a jovem de 1960  ainda sente saudades mas, muitas vezes, se identifica mais com os minóicos – civilização de paz e cultura destruída por um vulcão, um maremoto. Com a certeza, que se transforma em esperança, de que o umbuzeiro, como a  oliveira,  pode crescer e florescer  em solo árido.

Maju Costa


 
 
 
 

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